quinta-feira, 20 de maio de 2010

Da legitimidade processual: algumas reflexões!






Da legitimidade processual: algumas reflexões!


A legitimidade processual sempre gerou várias “gargalhadas” controversas na doutrina portuguesa e ao longo do desenvolvimento no nosso direito administrativo. De entre os vários pressupostos processuais quanto aos sujeitos, a legitimidade evidencia-se como o pressuposto cujas regras determinam quais as pessoas adstritas, que efectivamente podem e/ou devem fazer parte no processo. Assim, podemos afirmar que a sua aferição é bastante importante para dar ou não seguimento ao processo.

Depois de termos estudado Processo Civil e de termos combatido para tentar perceber as questões da legitimidade, uma primeira leitura dos arts. 9º e 10º do Código de Procedimento dos Tribunais Administrativos (doravante CPTA), não nos causou qualquer estranheza. Neste sentido, vou aqui cingir-me à análise da legitimidade no âmbito do Contencioso Administrativo e focar os seus pontos essenciais.

Primeiramente, a legitimidade activa surge-nos no art.9º/1 do CPTA: como uma legitimidade que oriunda do sujeito (o autor), pelo facto de alegar “ser parte na relação material controvertida” (9º/1 in fine CPTA). Isto significa que a lei considera uma parte como legítima para propor uma acção, desde que a mesma alegue a titularidade de um direito ou interesse legalmente protegido que mereça a tutela administrativa. Cura-se aqui de um interesse subjectivo, individual e específico, contrapondo-se ao interesse subjacente à acção popular, cuja ressalva do art.9º/1, 1ªparte CPTA e a 1ªparte do art.9º/2 CPTA nos indica.

Tal como no Processo Civil, o Contencioso Administrativo estabelece a legitimidade em função da relação material controvertida. No entanto, também o Contencioso Administrativo, no que respeita à legitimidade, teve uma grande evolução que nos fez chegar ate às normas que presentemente vigoram. Cabe-nos fazer uma breve alusão a este percurso histórico. Tal como todo o Contencioso Administrativo, este tema surgiu no modelo francês, demonstrando uma lógica clássica, segundo a qual o Contencioso Administrativo era do tipo objectivo, ou seja, um "processo ao acto", "a mera verificação da legalidade de uma actuação administrativa". O Professor Vasco Pereira da Silva, na sua obra O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise relata-nos um pouco como tudo aconteceu. Todo o processo girava em torno do acto administrativo, ou seja, "tudo e todas as partes". Isto significava que o particular nunca ia ao processo defender o seu próprio interesse. A sua presença suscitava-se apenas para colaborar com o tribunal na defesa da legalidade e do interesse público. Tal como a Administração, que estava em juízo como "autoridade recorrida", auxiliando o tribunal. Mas isto resultava da já tratada promiscuidade entre Administração e a Justiça - tanto o tribunal como a Administração prosseguiam o mesmo fim, integrando-se, ambos, no poder do Estado. O Professor Marcelo Caetano (na sua obra Princípios Fundamentais do Direito Administrativo) afirmou que: "o interesse da Administração é o mesmo que o do tribunal, está interessado no cumprimento preciso, inteligente, adequado e oportuno da lei". Esta conjuntura foi afastada em Portugal pela Constituição de 1976. A mesma integrou o Contencioso Administrativo no Poder Judicial. Mesmo assim, o legislador continuava a referir-se à Administração como "autoridade recorrida". Actualmente, o legislador é claro nos arts. 9º e 10º do CPTA e resolveu o problema. Hoje em dia tanto o particular como a Administração são partes no processo administrativo pelo que também se começou a adquirir a devida importância do princípio da igualdade da participação no processo que, agora não levanta quaisquer dúvidas. Foi, finalmente, afastado o modelo subjectivista. O particular pode agora estar em juízo para defesa dos seus direitos subjectivos, das posições substantivas de vantagem no âmbito da relação jurídica administrativa. Consagra-se ainda a possibilidade de acção pública e de acção popular (art.9º/2). Conclui-se assim, que o Contencioso Administrativo português é predominantemente subjectivo (art.9º/1), contendo algumas particularidades objectivas, pois assenta também na defesa da legalidade e do interesse público (9º/2), como não podia deixar de ser.

Relativamente à legitimidade passiva, a Administração é também procurada para "defesa de uma determinada interpretação da legalidade e do interesse público".

Apesar de toda a evolução que se tem verificado ao longo dos anos risonhos do contencioso administrativo, importa acrescentar que, continuam a subsistir alguns problemas na questão da legitimidade. Primeiramente, é importante atentar para o facto de o legislador dar preferência à pessoa colectiva pública como sujeito passivo. Como refere o Professor Vasco Pereira da Silva, na obra já referenciada, " a noção de pessoa colectiva pública não parece estar mais em condições de poder continuar a funcionar como único sujeito de imputação de condutas administrativas, em razão da complexidade da organização administrativa e da natureza multifacetada das modernas relações administrativas multilaterais", antes há que considerar as autoridades administrativas. E, apesar da preferência do legislador, este parece também ter querido estabelecer uma certa abertura, no sentido de se autonomizar as diversas autoridades administrativas como sujeitos processuais. Para tal vejamos os artgs 10º/2 e 4 que parece consagrar a regra alemã "segundo a qual quem deve estar em juízo é a autoridade administrativa responsável pelo comportamento litigado, ainda que se possa fingir que o faz em representação da pessoa colectiva". O art. 10º/6 confirma todo este raciocínio. Outro problema surge com a questão da multilateralidade das relações administrativas. Pois coloca-se a contenda de saber "em que medida é que, num processo intentado pelo autor contra uma determinada autoridade administrativa, devem também ser chamados a juízo os demais sujeitos da relação multilateral, de modo a que o tribunal possa considerar todos os interesses em causa e emitir uma sentença produtora de efeitos em relação a todos os intervenientes da relação jurídica material" no que respeita à relação da Administração com os particulares. O legislador consagrou algumas regras relevantes neste âmbito, solucionando alguns problemas que estavam por resolver. O art. 12º (que permite a coligação); o art. 48º (que regra os processos em massa), o art. 57º (que define o conceito de contra-interessados). Contudo, há ainda um longo caminho a percorrer nesta matéria, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, quer também pelo legislador. Acrescento o facto de considerar que o Contencioso Administrativo se deveria afastar um pouco mais da promiscuidade que o caracterizou nos seus primeiros anos. Não podia auto-intitular-se como um "processo ao acto", antes tendo que se demonstrar como um processo de partes: de um lado o particular, do outro a Administração, perante um terceiro, o juiz. Importa aqui referir que quem tem legitimidade para impugnar, quem alegue ser titular de um interesse pessoal e directo, designadamente, quem declare ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos tem de se atentar ao art.55º/1.

Pormenorizadamente, no que se refere aos requisitos do carácter “directo” e “pessoal”, deve ser estabelecida uma clara distinção entre um e outro. Na verdade, só o carácter “pessoal” do interesse diz respeito ao pressuposto processual da legitimidade, na medida em que se trata de exigir que a utilidade que o interessado pretende obter com a anulação ou a declaração de nulidade do acto impugnado seja uma utilidade pessoal, que ele reivindique para si próprio. De modo a poder afirmar-se que o impugnante é considerado parte legitima porque alega ser, ele próprio, o titular do interesse em nome do qual se move no processo. Já o carácter “directo” do interesse tem que ver com a questão de saber se existe um interesse actual em pedir a anulação ou a declaração de nulidade do acto que é impugnado. Admitindo que o impugnante é efectivamente o titular do interesse, trata-se de saber se esse interesse é actual. O requisito do carácter “directo” do interesse já não tem que ver com a legitimidade processual, mas com a questão do interesse processual em agir.

Assim, concluímos que o pressuposto da legitimidade não se confunde com o do interesse processual ou interesse em agir. Pode não haver qualquer dúvida quanto à questão de saber se quem está em juízo é parte na relação material, tal como o autor o configurou. Pelo que também se pode questionar a existência de uma necessidade efectiva de tutela judiciária e, portanto, de factos objectivos que tornem necessário o recurso à via judicial. O requisito do interesse processual sempre revelou, no contencioso administrativo, em domínios como o da impugnação de actos administrativos.

O requisito do interesse processual é, muitas vezes, designado como o novo contencioso administrativo, pois desempenha um papel muito mais relevante. Várias causas concorrem nesse sentido. A mais relevante decorre do facto de o novo sistema colocar à disposição dos eventuais interessados um conjunto de novas vias de acesso à justiça administrativa que não tem carácter impugnatório e, portanto, não desempenham uma função reactiva. A questão já se coloca porém, de modo diferente, quando se trate de prevenir eventuais agressões futuras ou de obter pronúncias judiciais que se limitem, muito simplesmente, a dizer o Direito, no propósito de afastar equívocos e riscos só potencialmente lesivos.

Regressando ao essencial do art.54º, este é um artigo sobre o interesse processual em demandar ou em impugnar actos administrativos ineficazes. A exemplo do que acontece com o art.39º, também ele tem em vista situações em que o problema da existência de um interesse em agir se coloca com subtileza, na medida em que se pode dizer que há uma presunção de que não existe interesse directo / actual, em impugnar actos administrativos que ainda não produzem efeitos na ordem jurídica porque ainda não lesaram ninguém. Tal como nas hipóteses do art.39º, tem-se em vista no art.54º : situações de lesão efectiva, resultantes de condutas ilegítimas, destituídas de fundamento jurídico, no art39º, as situações de incerteza, porventura decorrentes de afirmações ilegítimas da Administração; no art.54º/1, a), as situações de execução ilegítima do acto ineficaz; situações de ameaça de lesão, resultantes do fundado receio da verificação, num futuro próximo, de circunstâncias lesivas. No art.39º, o receio da adopção de condutas lesivas sem que tenha sido já praticado um acto administrativo; no art.54º/1 b), o receio das consequências lesivas futuras que resultarão da produção de efeitos e eventual execução do acto (ainda) ineficaz.

O CPTA não exige, em termos gerais, que os actos administrativos tenham sido objecto de prévia impugnação administrativa para que possam ser objecto de impugnação contenciosa. Dos artgs. 51º e 59º/4 e 5 decorre por isso a regra de que a utilização de vias de impugnação administrativa não é necessária para aceder a via contenciosa. Não é necessário para haver interesse processual no recurso à impugnação perante os tribunais administrativos que o autor demonstre ter tentado, infrutiferamente, obter a remoção do acto que considera ilegal por via extrajudicial. As decisões administrativas continuam, no entanto a estar sujeitas a impugnação administrativa necessária nos casos em que isso esteja expressamente previsto na lei, em resultado de uma opção consciente e deliberada do legislador; quando este a considere justificada. O problema é exclusivamente um problema de interesse em aceder à justiça, como bem demonstra a circunstância da imposição de impugnações administrativas necessárias poder ser motivada. Tal como sucede, em termos gerais, com a exigência do requisito do interesse processual, pelo duplo propósito de “evitar que as pessoas (no caso as entidades administrativas) sejam precipitadamente forçadas a vir a juízo, para organizarem, sob cominação de uma sanção grave, a defesa dos seus interesses, numa situação em que o problema da parte contrária (no caso, o impugnante), o não justifica. Pretende-se assim evitar que haja uma sobrecarga com acções desnecessárias, a actividade dos tribunais, cujo tempo é escasso para atender a todos os casos em que é realmente indispensável a intervenção jurisdicional.

Quanto à questão da acção popular, no art.9/º2 CPTA está expressamente consagrada a possibilidade de qualquer cidadão ou grupo de cidadãos, interporem uma acção com o objectivo de defesa de “bens e valores” constitucionalmente protegidos. Assiste-se assim a um alargamento da legitimidade activa de modo a possibilitar a defesa de interesses difusos, independentemente da relação com os bens ou interesses que sejam de natureza administrativa. O art.52º/3 CRP reconhece expressamente o direito de acção popular, apesar de remeter para a lei os casos em que tal acção pode ser proposta. A lei 83/95 no seu art.1º/2, designa como interesses protegidos a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público. O art. 9º/2 CPTA acrescenta “o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias”. Destes valores expressos, denota-se a importância e preocupação da acção popular na nossa sociedade moderna. Com a crescente massificação da produção, distribuição, informação e consumo, sobretudo numa sociedade de riscos sociais e, de subsistência crescentes, para alem de todos os avanços tecnológicos em que vivemos, estamos mais facilmente perante situações que nos afectam de uma maneira que ultrapassa o nosso exclusivo interesse. São pois interesses supra-individuais. Ressalve-se que o autor nesta acção não tem necessariamente de ser titular de um interesse difuso, podendo ser titular de um interesse individual homogéneo. Este último termo é particularmente importante no que concerne às relações de consumo e na determinação de indemnização na sua prática, enquanto que em teoria as diferenças são mínimas. O próprio art.52º/3 da CRP consagra o direito à indemnização decorrente da acção popular, que no caso de um interesse individual homogéneo - ao contrário do que acontece com os interesses difusos - terá que ter em conta o interesse de cada lesado, já que se pode reconduzir a um interesse geral em jogo à situação específica de cada um. No entanto, em sede de indemnização, essa apenas terá lugar nos casos em que efectivamente se lesou o bem, apesar de outros poderem também ser parte activa (ter legitimidade activa) na acção. Quanto às partes, o art.9º/2 confere legitimidade para acção popular a qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, às autarquias locais e ao Ministério Público. Esta última figura será a que, de entre as partes enunciadas, a que mais se destaca. O MP reforça a ideia alargamento de legitimidade activa no âmbito do Contencioso Administrativo, que surge no processo como magistrado em defesa da legalidade e do interesse público. É um órgão com um estatuto especial e de independência face a outros órgãos. Possui um regime próprio de intervenção processual, podendo apresentar-se como parte acessória especial – art. 334º do Código de Processo Civil. O MP apresenta-se neste caso como parte principal, como autor popular. Pelas suas funções, de defesa da legalidade e do interesse público se compreende a lógica subjacente à legitimação como parte na acção popular. Acrescentando o facto de que são precisamente estes os interesses que a acção popular visa proteger. Aproximar a defesa deste valores dos cidadãos, é outro objectivo subjacente a este alargamento de legitimidade activa, que não torna nem poderia tornar a defesa dos ditos absolutamente dependente da vontade e iniciativa dos cidadãos. O Ministério Público ao agir neste sentido, estará a fazê-lo em representação dos cidadãos e dos “seus” interesses. Representante então do Estado, se se entender o Estado como baseado na soberania popular (art.2º CRP). Não pode deixar de nos ser estranho que possa existir uma acção popular de iniciativa do Ministério Público contra o Estado, em que é o próprio Ministério Público que age como representante do Estado (art.11º/2 e 40º/1 b) CPTA).

Em suma, a legitimidade, enquanto importante pressuposto processual no Contencioso Administrativo, quanto aos sujeitos, à extensão da legitimidade activa na acção popular, ao abdicar da exigência de um interesse pessoal e directo na relação material controvertida, permite a defesa pelos cidadãos (ou pelo MP em sua representação) de interesses que, para além de individuais, são comuns e indivisíveis, ou seja, difusos e, cuja defesa é essencial para a boa convivência em sociedade que se pretende afigurar o mais justa possível.

Ana Rita Arcanjo Medalho, subturma 5



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