quarta-feira, 12 de maio de 2010

Entre a Espada da Legalidade e a Parede da Separação de Poderes.

Continuando esta nossa odisseia pela acção de condenação à prática de acto devido, prevista nos artigos 66º e ss. do C.P.T.A., vamos agora tratar do tema dos limites da pronúncia do tribunal nesta acção de condenação.
Nesta sede, é importante ter presente o artigo 3º do C.P.T.A., que no seu nº 1, vincula a Administração ao Principio da Separação de Poderes, o que significa, que embora os Tribunais Administrativos tenham uma jurisdição plena sobre todas as relações jurídicas administrativas ( 212º nº 3 da C.R.P.), devem exercer essa mesma jurisdição com a imparcialidade e o desligamento necessário em relação à função administrativa, ou seja, devem julgar e não administrar ou substituir-se à administração enquanto paladinos do Direito.
Feito este enquadramento, importa ter em conta que, no âmbito do artigo 71º do C.P.T.A. os poderes de pronúncia dos Tribunais Administrativos em matéria de condenação da Administração à prática de acto devido se desdobram em três vertentes principais:

1. De acordo com o nº1 do artigo 71º do C.P.T.A., os tribunais podem condenar a Administração à prática de actos legalmente vinculados, ou seja, àqueles actos cujo conteúdo está estritamente vinculado à lei, e onde a administração não tem qualquer margem de discricionariedade para actuar, não porque seja o tribunal a coarctar-lhe essa mesma margem de discricionariedade, mas porque o acto em si já não a permitia;

2. No nº2 desse mesmo artigo, o legislador inovou bastante, permitindo agora aos Tribunais, a condenação da Administração à prática de actos que têm um conteúdo discricionário, onde caberia à Administração escolher uma de entre as várias formas possíveis de conformação do acto, devendo apenas o tribunal “explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do acto”.


3. Podendo ainda englobar-se neste nº2 do artigo 71º, estão as situações em que, delineando-se em princípio ou hipoteticamente, várias soluções que a Administração poderia adoptar para um mesmo caso, conformando o conteúdo do acto de acordo com os seus poderes discricionários; e o tribunal entenda que apenas uma delas é naquela situação conforme com a legalidade, devendo a Administração adoptar aquele conteúdo para o acto e não outro, de entre o leque de opções que tinha ou seu dispor. São os chamados actos de discricionariedade zero. Na designação adoptada pelo Prof. Mário Aroso de Almeida.


Pretendemos então saber, até onde pode ir o juiz na determinação das ”vinculações” a adoptar pela Administração no seu comportamento futuro, até onde pode chegar o seu juízo sem ferir o Princípio da Separação de Poderes, norteador do Estado de Direito em que vivemos.
Como já dissemos no comentário anterior, as acções de condenação à prática de acto devido suscitam questões para as quais não há uma resposta unívoca, e que dividem sistematicamente a doutrina, sendo esta questão dos limites da pronúncia do juiz uma dessas questões. Assim, podemos dizer que existem duas grandes correntes na nossa doutrina: uma assumidamente contra a inovação que consistiu na introdução da acção de condenação à prática de acto devido, contestando inclusivamente a sua constitucionalidade face ao Princípio da Separação de Poderes, (artigo 2º da C.R.P), e entre a qual se encontra nomes como o da Dra. Maria Francisca Portocerro ou o Dr. Luís Fábrica, e uma outra corrente, diametralmente oposta a esta, que é de facto a doutrina dominante, na qual se encontram nomes como os dos Profs. Vasco Pereira da Silva, Mário Aroso de Almeida ou Vieira de Andrade, e que apoia a acção de condenação à prática de acto devido, aceitando que os Tribunais se pronunciem sobre as condutas a adoptar pela Administração, com mais ou menos amplitude.
Relativamente à primeira corrente, a condenação da Administração à prática de um acto estritamente vinculado pela lei ( artigo 71º nº1 do C.P.T.A.) não coloca, para estes autores, quaisquer problemas, até porque esse mesmo já podia ser anteriormente conseguido mediante uma sentença de execução da decisão de anulação do acto administrativo, veja-se o artigo 179º do C.P.T.A., ainda que surtindo efeitos mais dilatados no tempo, uma vez que é necessário intentar uma acção de execução da sentença posterior à acção de impugnação do acto administrativo. É de facto, no campo da acção de condenação à prática de acto devido que “envolva a formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa” (artigo 71º nº2 do C.P.T.A.), que estes autores põem a tónica dissonante; na sua linha de pensamento, para que não seja violado o Princípio da Separação de Poderes, a expressão indeterminada “explicitar as vinculações” prevista no artigo 71º nº 2 do C.P.TA., deve ser interpretada apenas no sentido de que o juiz se deve limitar a repetir as disposições que já constam da lei, e que considera serem aplicáveis naquele caso. Sendo essa a única via possível de salvaguarda da constitucionalidade do preceito, uma vez que, afastando-se das vinculações legais o juiz estará inevitavelmente a determinar o conteúdo essencial do acto que deverá ser acatado pela Administração, substituindo-se a esta. A Dra. Maria Francisca Portocerro, num artigo sobre esta matéria invoca inclusivamente, como modelo inspirador desta acção de condenação, a figura da autocontentação do juiz, existente no direito anglo-saxónico, onde se admite de facto que o juiz se substitua à Administração, fazendo notar, no entanto, que o Direito Anglo-Saxónico é também um Direito no qual o Princípio da Separação de Poderes não é visto de forma tão rígida e bem delimitada como acontece entre nós, tendo contornos mais difusos. Citando essa mesma autora o nosso actual regime de acção de condenação à prática de acto devido caí no erro de temer tanto o arbítrio do poder administrativo, de que perde a consciência de que pode estar a substituir esse mesmo arbítrio pelo arbítrio do juiz a posteriori.
Ainda segundo a mesma autora a solução encontrada tem ainda a desvantagem de dar origem a um desfasamento entre a entidade que decide o acto, que será o Tribunal, e a entidade que formalmente pratica o acto, a Administração, e que poderá ser politicamente responsabilizada por ele, pelo Governo ou pela Assembleia da República, que é a Administração.
Por último, aponta como possível solução alternativa a este regime a adopção de uma figura paralela à figura prevista no artigo 77º do C.P.T.A., para a declaração de ilegalidade por omissão de normas administrativas, devendo ter lugar, em vez da acção de condenação, uma pronúncia judicial, que seria uma condenação, mas apenas uma condenação da administração a agir, dentro de determinado prazo, não se determinado como é que a administração deve agir, salvaguardando-se assim a discricionariedade e a autonomia da Administração.
Não consideramos, de todo, que esta argumentação deva proceder, representando ela um arcaísmo que alguns teimam em manter actual. Em primeiro lugar, o acolhimento de semelhante doutrina representaria um grave retrocesso face à evolução legislativa que se tem verificado entre nós, uma vez que, tendo o legislador constitucional outorgado aos particulares, com a alteração do artigo 268º nº4 da C.R.P. o direito de verem ser determinada à Administração a prática dos actos legalmente devidos, não se compreende, como é que se pode defender uma posição na qual simplesmente se exija do tribunal uma conduta de tal modo apegada à lei que leve a Administração a decidir como bem entender, desde que dentro da lei. Isto não satisfaz de modo algum as exigências de subjectivização de que o nosso Contencioso Administrativo tem sido alvo, uma vez que se corria o risco de a Administração adoptar uma conduta que em nada vá ao encontro da satisfação dos interesses do particular, gorando assim quaisquer expectativas de credibilidade no sistema judicial que o particular certamente tinha quando a ele recorreu para fazer valer o seu direito.
Como bem diz o Prof. Vasco Pereira da Silva, através da explicitação das vinculações a que a Administração está sujeita pretende-se que o Tribunal emita “uma decisão respeitadora das exigências legais”, a qual a Administração deve cumprir, pautando por ai a sua conduta, não vemos como possa daí sair afectada a discricionariedade administrativa, uma vez que em nenhum momento o Tribunal actua pela Administração, obrigando-a apenas a pautar as suas decisões pelo crivo da legalidade.
Questão que seguramente merece uma apreciação mais cuidada por parte da doutrina é aquela que se prende com os chamados actos de discricionariedade zero, uma vez que, nesta situação, onde originariamente havia discricionariedade por parte da Administração, porque, em abstracto, a lei lhe conferia certos poderes de conformação do acto, e o tribunal acaba por concluir que no caso concreto, objectivamente, apenas pode ser praticado um acto com determinado conteúdo.
De facto, esta é uma situação em que o Tribunal não se limita a dizer quais as vinculações negativas que a Administração deve observar para não reincidir na ilegalidade do acto, mas tem aqui um conteúdo positivo, uma vez que as circunstâncias daquele caso concreto permitem afirmar que houve uma redução da discricionariedade da Administração a um nível zero, como frisa o Prof. Pacheco de Amorim “ou porque a escolha já foi realizada, ou porque a avaliação subjectiva já teve lugar no decurso da fase de instrução do procedimento administrativo, ou ainda porque a concreta circunstância do caso elimina completamente a escolha”. No entanto, trata-se de uma situação, na qual o tribunal também não tem alternativa de decisão, uma vez que, permitindo à Administração que faça actuar o seu poder discricionário, caí automaticamente na ilegalidade. Entendemos assim, que também aqui não se encontra violado o Princípio da Separação de Poderes.

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