O artigo 71º, nº2, CPTA e o objecto do processo
O objecto do processo administrativo é, tal como objecto do processo civil, um elemento delimitador do próprio processo e, como tal, do conteúdo da decisão a proferir pelo juiz. Importa, portanto, procurar delimitar o que deve ser considerado objecto do processo para efeitos do contencioso administrativo. O Prof. Vieira de Andrade procura dividir o objecto do processo em dois princípios: o da vinculação do juiz ao pedido (como modo de assegurar que haja uma correspondência efectiva entre o pedido e a decisão judicial, no sentido em que não deve a sua decisão extravasar o que foi pedido pelas partes, simultaneamente apreciando tudo aquilo que foi pedido pelas partes); e o da limitação do juiz pela causa de pedir (no sentido de que o tribunal estaria adstrito a basear a sua decisão nos factos invocados pelas partes no seio do processo, enquanto fundamentos concretos do efeito jurídico pretendido) – este último princípio estaria, no seu entendimento, afastado nos processos administrativos de impugnação, por motivos atinentes à fiscalização da legalidade das normas e actos administrativos. É neste sentido, aliás, que parece seguir o Prof. Vasco Pereira da Silva quando fala numa tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares enquanto aspecto bastante significativo da reforma operada em 2003 no contencioso administrativo. Do meu ponto de vista, parece de adoptar esta posição, de forma a não reduzir sobremaneira o poder do juiz neste âmbito, como mais à frente procurarei explicitar. Ainda no que toca ao pedido importa ter presente a distinção entre pedido imediato e pedido mediato, operada pelo Prof. Pereira da Silva, sendo o primeiro o efeito pretendido pelo autor e o segundo o direito que se pretende tutelar. Esta distinção terá toda a relevância em sede do art. 71º, nº2, CPTA, nos termos infra referidos. Quanto à causa de pedir, ela deveria traduzir-se no dever de conhecimento da integralidade da relação jurídica trazida a juízo, de forma a permitir uma apreciação integral da actuação administrativa que é objecto daquele processo (aqui objecto não será no sentido acima mencionado, mas enquanto conduta administrativa que motiva o particular a recorrer a juízo). Neste sentido versa o art. 95º, nº2, CPTA, a propósito, mais uma vez, da impugnação administrativa, quando refere que para além daquilo que foi invocado pelas partes deve o tribunal “identificar a existência
de causas de invalidade diversas das que tenham sido alegadas, ouvidas as partes para alegações complementares”. Daqui resulta que a causa de pedir, de per se, não será um limite à decisão final a proferir pelo juiz; ela só o será na medida da sua conexão com as pretensões formuladas pelas partes, no limite, pelo pedido. Aqui o que importa é, como bem refere o Prof. Pereira da Silva, a pretensão do particular, sendo que é esta pretensão que limita ou estende a decisão do juiz, enquanto elemento delimitador.
Cabe de seguida analisar o artigo 71º, nº2, procurando coaduná-lo correctamente com o que foi até agora descrito. Dispõe este normativo que “Quando a emissão do acto pretendido envolva a formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa e a apreciação do caso concreto não permita identificar apenas uma solução como legalmente possível, o tribunal não pode determinar o conteúdo do acto a praticar, mas deve explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do acto devido”. Com este nº2 pretendeu o legislador não limitar o juiz a uma sentença de decisão, conferindo-lhe alguma margem de liberdade, no que respeita às vinculações a seguir pela Administração aquando da condenação à prática de acto devido. Mas há que interpretar este nº2 com muita cautela. Por um lado, há que fazer a destrinça consoante o acto administrativo em causa; o que está em causa, primeiramente é averiguar o grau de discricionariedade a que a Administração se encontrava adstrita na (devida) prática daquele acto. Isto porque corolário, directo e necessário, desta extensão, é a extensão da própria decisão judicial. Em causa está, como já deve ter sido entendido entrelinhas, é saber se, e até que ponto, pode estar em causa o princípio da independência e da separação de poderes. Se o grau de vinculação da Administração for elevado, e tanto mais elevado quanto seja, maior será o grau de liberdade conferido ao juiz na apreciação da causa, estando aqui em causa os critérios, mais ou menos amplos, do acto que deveria ter sido praticado pela Administração. Esta é uma discussão que pode parecer algo distante da temática deste texto. Mas não o será se forem estabelecidos padrões, critérios, a respeitar pelo juiz. Critérios possíveis seriam o dos princípios vinculados do poder jurisdicional, o da reserva da administração e o dos juízos vinculados não valorativos.
Mas de que forma se pode problematizar a questão do objecto neste contexto? Imagine-se um caso em que a Administração, de forma a praticar um acto administrativo, tivesse que proceder a indagações prévias ou tivesse que praticar outros actos e, não o tendo feito, diferisse a pretensão do particular ou, no limite, omitisse a conduta devida. O particular, ao impugnar o acto (ou a sua omissão), poderia fazer somente referência ao acto final, omitindo a necessidade da Administração ter efectuado todo o procedimento prévio. De que forma estaria o juiz vinculado na sua decisão final? Não poderia ele ficar “preso” pelo que foi invocado pelo particular? Não poderia estar em causa a vinculação do juiz às questões de factos trazidas a juízo pelo autor? No meu entender a resposta teria que ser negativa. Se a causa de pedir visa a apreciação da actuação administrativa no seu todo, respeitante a todas as possíveis causas de invalidade, e se essa mesma causa de pedir carece de ser interligada com as pretensões formuladas pelas partes, não faria qualquer sentido restringir o alcance da decisão do juiz, pelo simples facto de o autor não ter invocado um facto (a preterição do procedimento prévio à emissão do acto final), o qual ele poderia até desconhecer. No limite, estar-se-ia a punir o autor, bem como a limitar o controle da legalidade do acto pelo juiz, o que, de resto, parece ser totalmente contrário à ratio legislativa criadora do CPTA.
Assim sendo, a afirmação de que o juiz se encontra vinculado, em sede de objecto processual, aos factos invocados pelas partes, não deve ser entendida em termos absolutos, mas antes interpretada e conjugada em termos hábeis com as pretensões dos particulares que são, no fundo, o objecto da protecção desta norma contida no 71º, nº2. Não está aqui em causa a introdução de novos factos, mas tão somente de identificar ilegalidades dos actos administrativos, distintas das referenciadas pelo autor, desde que essa fonte de invalidade já resulte das pretensões dos particulares.
Duarte Amaral da Cruz, subturma 5, nº 16376
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