quinta-feira, 13 de maio de 2010

A condenação à prática de acto devido

A acção de condenação da Administração à prática de acto legalmente devido constitui uma das grandes manifestações de mudança na lógica do contencioso administrativo, passamos de uma mera possibilidade de anulação de actos para uma fase em que os tribunais podem, efectivamente, condenar a Administração à prática de um acto devido.

Houve um longo caminho percorrido até esta fase dado que em nome do “sagrado princípio” da separação de poderes se entendia que o tribunal só poderia anular actos, mas nunca poderia ordenar que a Administração praticasse os actos que, na realidade, eram devidos. Tal facto prendia-se também com a ideia que se tinha de actuação da Administração, assim, entendia-se, por vezes, que a actuação da Administração se fazia “à margem” da lei, isto é, com grande discricionariedade. Todavia, discricionariedade não é sinónimo de excepção ao princípio da legalidade, uma vez que o que a Administração deve é realizar o direito no caso concreto, mediante escolhas que não são livres, estão vinculadas pela lei, por isso, seria sempre possível o seu controlo jurisdicional. Mas este controlo teria que ser feito a posteriori dado que se fosse feito antes da actuação administrativa entendia-se que violava o princípio da separação de poderes porque o tribunal não poderia (dentro dos parâmetros legais) ordenar a prática de actos à Administração.

Foi a Constituição de 1976 e as suas sucessivas revisões que alteraram este paradigma. Papel especial deve ser, contudo, atribuído à revisão de 1997. Esta estabeleceu, de forma expressa, que a possibilidade de “determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos” (art. 268º nº 4 CRP) é uma vertente essencial e primordial do princípio da tutela plena e efectiva dos direitos dos cidadãos face à Administração. Importa, contudo, referir que segundo o Prof. Vieira de Andrade a opção pela “acção condenatória à prática de acto administrativo devido” é isso mesmo, isto é, uma opção, uma vez que face ao preceito constitucional teria sido possível, em sua opinião, seguir outras “vias” como a de uma “pronúncia judicial declarativa ou a de uma sentença substitutiva”.

Esta acção administrativa especial serve para obter a condenação da entidade competente à prática de um acto administrativo (devido) que tenha sido ilegalmente omitido ou recusado, tudo isto dentro de um certo prazo razoável (art. 66º CPTA). Temos assim nesta acção dois pedidos principais: o de condenação à prática de acto administrativo omitido e a condenação à prática de acto administrativo favorável ao particular, em substituição de um acto desfavorável anteriormente praticado.

O “acto devido” é um conceito moldado através da pretensão do particular uma vez que este será aquele acto administrativo que, na opinião do autor, deveria ter sido emitido ou não foi, independentemente de ter havido uma simples omissão ou uma efectiva recusa da prática desse acto. Assim, a legitimidade activa será também moldada em função deste conceito de “acto devido” uma vez que poderá apresentar o pedido de condenação aquele que tenha a titularidade de direitos ou interesses legalmente protegidos dirigidos à emissão daquele acto (e quando se trate de deveres não oficiosos, aquele que tenha requerido esse mesmo acto).

Esta acção administrativa especial tende, em minha opinião, a ter um papel cada vez mais relevante, relevância essa que lhe vem da própria construção legislativa que foi feita à volta da acção de condenação à prática de acto legalmente devido. A lei estabelece que, quer para os casos de omissão legal na prática de acto administrativo, quer nos casos de acto de conteúdo “desfavorável” ou negativo: o objecto do processo será sempre a pretensão do interessado e não o acto de indeferimento, dado que este será eliminado da ordem jurídica aquando da pronúncia condenatória (art. 66º nº 2 CPTA). Assim, o objecto do processo será o direito ou interesse do particular em face da Administração, e não será nunca o acto administrativo desfavorável ao particular, conforme refere Mário Aroso de Almeida “o objecto do processo não se define por referência a esse acto”. Daí que o acto administrativo, quando existe, não possui, na acção de condenação, autonomia porque aquele será, de forma automática, eliminado se o tribunal der provimento ao direito do particular.

Na condenação à prática de acto devido, está em causa não um acto em si mesmo, mas sim o direito do particular, que tem direito a uma actuação administrativa legalmente vinculada. Logo está em causa uma relação jurídica, entre particular e Administração, por isso, a condenação da Administração decorre do direito subjectivo do particular, que foi lesado, ou por uma omissão ou por um acto (legalmente) indevido. Numa palavra, o que está aqui em causa é o próprio direito da relação jurídica substantiva e não um acto que existiu mas que era indevido ou que devesse ter existido, no caso de omissão administrativa.

Com efeito, parece, efectivamente, que o pedido de condenação à prática de acto administrativo devido tem tendência a alargar o seu âmbito, por várias ordens de motivos. Primeiro, ao estabelecer que o que está aqui em causa é o direito subjectivo do particular, o legislador estabelece uma (quase) total irrelevância do acto administrativo (eventualmente) praticado. Se o que está em causa é o direito, o mais natural é que o acto, quando é reconhecido esse direito, “desapareça” da ordem jurídica. Segundo, não é pressuposto deste meio processual que tenha existido um acto, isto é, a condenação é possível em casos de omissão da Administração. O que faz mais sentido do que “fingir” que existe um acto, para se “fingir” que se anula, para se “fingir” depois que esse acto foi anulado, daí resultando a obrigação de a Administração praticar o acto devido. Terceiro, e talvez o ponto mais importante, parece ser o próprio legislador a atribuir preferência à condenação ao acto devido quando estabelece que o particular que, apresenta pedido de anulação, em vez de um pedido de condenação, deve ser convidado a fazer o pedido adequado (art. 51º nº 4 CPTA). Isto é, é o próprio legislador a estabelecer que o que está, na maioria dos casos, em causa, aquilo que é “objecto de apreciação jurisdicional, em todas as situações em que a Administração se encontra vinculada a actuar de um modo favorável ao particular, não é o acto administrativo, ou a falta dele, mas sim o próprio direito do particular a essa conduta” (Vasco Pereira da Silva).

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