Impugnação administrativa necessária, um resquício histórico.
A reforma do contencioso administrativo, ocorrida em 2004 com a introdução do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), veio a ter profundas implicações de direito substantivo, nomeadamente a nível da impugnação administrativa prévia (casos da reclamação e recurso hierárquico).
Nos termos do art. 158.º/2 Código do Procedimento Administrativo (CPA), os particulares, quando não concordem com uma decisão administrativa, podem reclamar para o autor do próprio acto administrativo. É igualmente possível interpor recurso, em regra, para o superior hierárquico do autor do acto recorrido.
Por estas duas vias se tentou assim solucionar, de forma mais rápida e directa, o problema colocado pelo acto administrativo cuja decisão era discutida pelo particular.
A impugnação administrativa tem a vantagem de chamar à decisão agentes cuja relação com o acto administrativo e com o caso concreto é mais directa, dado que essa decisão administrativa adviria do próprio órgão que emitiu o acto ou de um superior hierárquico cuja proximidade com o caso era ainda grande, o que, em princípio, permite tutelar de forma mais eficiente a legalidade da decisão por conhecimento dos circunstancialismos exactos do caso em apreço.
Para além disso, a impugnação administrativa tem ainda a vantagem de não suscitar problemas relacionados com o Princípio da separação de poderes, dado que se trata da própria Administração a resolver um problema administrativo, não havendo interferência directa do poder judicial.
A impugnação administrativa pode ser necessária ou facultativa, consoante a impugnação judicial do acto administrativo pressuponha previamente e de forma obrigatória a decisão da própria Administração, nomeadamente por recurso hierárquico.
O art. 167.º/1 CPA é bastante claro nesse aspecto, prevendo que o recurso hierárquico é necessário quando o acto administrativo é insusceptível de recurso contencioso, porque precisamente, nestes casos, a posterior acção judicial será referente à própria decisão do recurso hierárquico. Assim, a decisão do recurso hierárquico necessário é vista como um verdadeiro pressuposto para a admissibilidade da acção de impugnação contenciosa.
O problema que se coloca no actual sistema administrativo português é que, apesar de o CPA manter intacta a norma do art. 167.º/1 a verdade é que o recurso hierárquico necessário, como regra geral, foi eliminado, levando consigo a necessidade de impugnação administrativa prévia.
Assim, podemos dizer que, regra geral, o recurso hierárquico obrigatório deixou de existir. No entanto, será ainda necessário quando determinadas leis especiais expressamente o determinarem e, nesse caso, mantém-se em pleno vigor o entendimento resultante do art. 167.º/1 CPA.
Importa analisar em que contexto histórico surgiu esta alteração significativa a nível do recurso administrativo necessário.
Anteriormente à já referida reforma de 2002, estava em vigor a Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho), também designada por LPTA, que veio a ser revogada pelo CPTA quando este entrou em vigor em 2004.
A LPTA determinava no seu art. 25.º/1 que só seria admissível recurso dos actos definitivos e executórios. Ora, apesar de a lei não fazer referência a qualquer meio obrigatório de impugnação administrativa, a doutrina maioritária da época entendeu que um acto administrativo só estaria determinado de forma definitiva com a última decisão possível da Administração sobre o acto em questão, isto é, com o último acto decisório que levaria ao final do procedimento administrativo. O mesmo será dizer que a definitividade e exequibilidade exigidas pela LPTA se referiam ao esgotamento de todos os meios de impugnação administrativa, pelo que, sendo o recurso obrigatório, só com a sua interposição e consequente decisão seria possível a impugnação contenciosa.
Com a entrada em vigor do CPTA toda esta lógica foi alterada dado que o novo código não estabelece nenhum critério semelhante ao da LPTA, nem refere em caso algum ao recurso hierárquico necessário.
Pelo contrário, relativamente à acção especial de impugnação de actos, o único critério de legitimidade activa é o do art. 55.º em conjugação com o art. 9.º aplicável a todos os tipos de acções. Deste artigo 55.º CPTA resulta que o critério para a impugnação de actos é o da lesividade desse mesmo acto para os direitos ou interesses legalmente protegidos do seu titular, isto é, basta que o acto administrativo cause dano ou prejuízo na esfera jurídica dos sujeitos que o alegam, independente do que se passou na via graciosa.
Ora, este critério de lesão de bens jurídicos particulares é incompatível com a ideia da obrigatoriedade de recurso hierárquico dado que, deste que exista este pressuposto, o lesado pode ter todo o interesse em que a sua pretensão seja imediatamente sujeita a escrutínio judicial, em vez de ter de esperar por uma decisão da Administração.
Este critério da lesividade como pressuposto essencial de legitimidade activa para a impugnação contenciosa de actos surgiu com a revisão constitucional de 1989. Efectivamente depois desta alteração, a CRP passou a estabelecer no seu art. 268.º/4 que aos administrados é garantida uma tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, nomeadamente através da impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem.
Assim, antes do próprio CPTA e ainda na vigência da LPTA, a CRP passou a definir como critério de legitimidade para o recurso contencioso de actos a lesividade. Posteriormente, com a introdução do CPTA a lei processual veio uniformizar-se com o entendimento constitucional, daí que uma análise cuidadosa do art. 167.º/1 CPA, tendo em conta a sua interpretação histórica, leve a concluir que o recurso hierárquico obrigatório deixou de ser a regra geral, algo que, claramente, a CRP quis introduzir.
De acordo com este entendimento, ainda antes da entrada em vigor do CPTA em 2004, alguma doutrina (nomeadamente o Prof. Vasco Pereira da Silva) pronunciou-se no sentido da inconstitucionalidade da referida norma da LPTA, precisamente porque esta estabelecia um critério de definitividade incompatível com a simples lesividade exigida pela CRP, violando o Princípio da tutela jurisdicional efectiva que visa precisamente descomplicar o acesso dos particulares à acção contenciosa, por forma a que as suas posições jurídicas sejam asseguradas de forma definitiva.
Com a revogação da LPTA, a questão da inconstitucionalidade do art. 25.º deixou de ser relevante, mas mantém-se o fundamento da doutrina que defendia essa posição.
Efectivamente, apesar do recurso hierárquico necessário como regra geral já não ser aceite, existem ainda numerosas leis especiais que o consagram obrigatório para os casos por elas fixados. Nestes casos ele será efectivamente necessário?
A resposta a esta questão só pode ser analisada em concreto dado que o princípio da tutela jurisdicional efectiva, com assento constitucional e também legal, pelo art. 2.º em conjugação com o ar. 7.º CPTA, determina que a impugnação contenciosa de actos administrativos lesivos seja um instrumento de garantia dos particulares e não de afastamento da protecção judicial. Assim, o que importa é a potencialidade lesiva dos actos e não que exista prévio recurso, pois o que se pretende afinal é uma maior facilidade no acesso à justiça.
Assim, poderia dizer-se que estas leis especiais que estabelecem recurso obrigatório seriam inconstitucionais, mas essa posição não deve ser generalizada. Importa pois fazer uma análise da própria lei em concreto e do motivo que subjaz à necessidade do recurso hierárquico.
Se a função da norma for uma função puramente garantística da posição do particular, então não se pode falar em inconstitucionalidade, porque precisamente a norma pretende que a tutela do direito particular seja assegura de forma mais eficaz. Contrariamente, se a função da norma que estabelece o recurso obrigatório visar apenas dificultar a impugnação contenciosa do acto, não trazendo o recurso qualquer garantia acrescida para o titular dos bens lesados, então essa norma violará o princípio da tutela jurisdicional efectiva, padecendo de inconstitucionalidade material e consequentemente leva a que se aplique a regra geral que é a da desnecessidade de recurso prévio à impugnação.
Posição própria nesta matéria tem o Prof. Vasco Pereira da Silva que entende que a normas especiais que estabelecem a obrigatoriedade do recurso hierárquico constituem um caso de inconstitucionalidade material, pelo que não haverá, em caso algum, a necessidade desse recurso. Assim, o Prof. não faz a diferenciação consoante a função do recurso, o que acaba por ser uma posição mais lesiva para os interesses particulares, sob a forma de posição mais protectora.
Não perfilho desta posição entendendo que devemos sempre analisar o fundamento que o legislador pretendeu imputar à necessidade de recurso hierárquico. Assim, consoante o que resultar dessa interpretação se chegará a um entendimento sobre o carácter obrigatório ou meramente facultativo do recurso.
Quanto à regra geral de recurso hierárquico obrigatório ela é definitivamente repudiada no novo contexto processual português, pelo que os particulares lesados por um acto administrativo poderão sempre ver a sua situação definitivamente decidida em acção contenciosa, com intervenção do poder judicial e dos benefícios de isenção a ele inerentes.
Marta Sofia Antunes
Turma A1
N.º 16952
Importa analisar em que contexto histórico surgiu esta alteração significativa a nível do recurso administrativo necessário.
Anteriormente à já referida reforma de 2002, estava em vigor a Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho), também designada por LPTA, que veio a ser revogada pelo CPTA quando este entrou em vigor em 2004.
A LPTA determinava no seu art. 25.º/1 que só seria admissível recurso dos actos definitivos e executórios. Ora, apesar de a lei não fazer referência a qualquer meio obrigatório de impugnação administrativa, a doutrina maioritária da época entendeu que um acto administrativo só estaria determinado de forma definitiva com a última decisão possível da Administração sobre o acto em questão, isto é, com o último acto decisório que levaria ao final do procedimento administrativo. O mesmo será dizer que a definitividade e exequibilidade exigidas pela LPTA se referiam ao esgotamento de todos os meios de impugnação administrativa, pelo que, sendo o recurso obrigatório, só com a sua interposição e consequente decisão seria possível a impugnação contenciosa.
Com a entrada em vigor do CPTA toda esta lógica foi alterada dado que o novo código não estabelece nenhum critério semelhante ao da LPTA, nem refere em caso algum ao recurso hierárquico necessário.
Pelo contrário, relativamente à acção especial de impugnação de actos, o único critério de legitimidade activa é o do art. 55.º em conjugação com o art. 9.º aplicável a todos os tipos de acções. Deste artigo 55.º CPTA resulta que o critério para a impugnação de actos é o da lesividade desse mesmo acto para os direitos ou interesses legalmente protegidos do seu titular, isto é, basta que o acto administrativo cause dano ou prejuízo na esfera jurídica dos sujeitos que o alegam, independente do que se passou na via graciosa.
Ora, este critério de lesão de bens jurídicos particulares é incompatível com a ideia da obrigatoriedade de recurso hierárquico dado que, deste que exista este pressuposto, o lesado pode ter todo o interesse em que a sua pretensão seja imediatamente sujeita a escrutínio judicial, em vez de ter de esperar por uma decisão da Administração.
Este critério da lesividade como pressuposto essencial de legitimidade activa para a impugnação contenciosa de actos surgiu com a revisão constitucional de 1989. Efectivamente depois desta alteração, a CRP passou a estabelecer no seu art. 268.º/4 que aos administrados é garantida uma tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, nomeadamente através da impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem.
Assim, antes do próprio CPTA e ainda na vigência da LPTA, a CRP passou a definir como critério de legitimidade para o recurso contencioso de actos a lesividade. Posteriormente, com a introdução do CPTA a lei processual veio uniformizar-se com o entendimento constitucional, daí que uma análise cuidadosa do art. 167.º/1 CPA, tendo em conta a sua interpretação histórica, leve a concluir que o recurso hierárquico obrigatório deixou de ser a regra geral, algo que, claramente, a CRP quis introduzir.
De acordo com este entendimento, ainda antes da entrada em vigor do CPTA em 2004, alguma doutrina (nomeadamente o Prof. Vasco Pereira da Silva) pronunciou-se no sentido da inconstitucionalidade da referida norma da LPTA, precisamente porque esta estabelecia um critério de definitividade incompatível com a simples lesividade exigida pela CRP, violando o Princípio da tutela jurisdicional efectiva que visa precisamente descomplicar o acesso dos particulares à acção contenciosa, por forma a que as suas posições jurídicas sejam asseguradas de forma definitiva.
Com a revogação da LPTA, a questão da inconstitucionalidade do art. 25.º deixou de ser relevante, mas mantém-se o fundamento da doutrina que defendia essa posição.
Efectivamente, apesar do recurso hierárquico necessário como regra geral já não ser aceite, existem ainda numerosas leis especiais que o consagram obrigatório para os casos por elas fixados. Nestes casos ele será efectivamente necessário?
A resposta a esta questão só pode ser analisada em concreto dado que o princípio da tutela jurisdicional efectiva, com assento constitucional e também legal, pelo art. 2.º em conjugação com o ar. 7.º CPTA, determina que a impugnação contenciosa de actos administrativos lesivos seja um instrumento de garantia dos particulares e não de afastamento da protecção judicial. Assim, o que importa é a potencialidade lesiva dos actos e não que exista prévio recurso, pois o que se pretende afinal é uma maior facilidade no acesso à justiça.
Assim, poderia dizer-se que estas leis especiais que estabelecem recurso obrigatório seriam inconstitucionais, mas essa posição não deve ser generalizada. Importa pois fazer uma análise da própria lei em concreto e do motivo que subjaz à necessidade do recurso hierárquico.
Se a função da norma for uma função puramente garantística da posição do particular, então não se pode falar em inconstitucionalidade, porque precisamente a norma pretende que a tutela do direito particular seja assegura de forma mais eficaz. Contrariamente, se a função da norma que estabelece o recurso obrigatório visar apenas dificultar a impugnação contenciosa do acto, não trazendo o recurso qualquer garantia acrescida para o titular dos bens lesados, então essa norma violará o princípio da tutela jurisdicional efectiva, padecendo de inconstitucionalidade material e consequentemente leva a que se aplique a regra geral que é a da desnecessidade de recurso prévio à impugnação.
Posição própria nesta matéria tem o Prof. Vasco Pereira da Silva que entende que a normas especiais que estabelecem a obrigatoriedade do recurso hierárquico constituem um caso de inconstitucionalidade material, pelo que não haverá, em caso algum, a necessidade desse recurso. Assim, o Prof. não faz a diferenciação consoante a função do recurso, o que acaba por ser uma posição mais lesiva para os interesses particulares, sob a forma de posição mais protectora.
Não perfilho desta posição entendendo que devemos sempre analisar o fundamento que o legislador pretendeu imputar à necessidade de recurso hierárquico. Assim, consoante o que resultar dessa interpretação se chegará a um entendimento sobre o carácter obrigatório ou meramente facultativo do recurso.
Quanto à regra geral de recurso hierárquico obrigatório ela é definitivamente repudiada no novo contexto processual português, pelo que os particulares lesados por um acto administrativo poderão sempre ver a sua situação definitivamente decidida em acção contenciosa, com intervenção do poder judicial e dos benefícios de isenção a ele inerentes.
Marta Sofia Antunes
Turma A1
N.º 16952
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