Legitimidade: Contra-interessados
A legitimidade é um dos principais pressupostos processuais do Contencioso Administrativo. Essa legitimidade vem referida no art.9º e 10º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA) na parte geral, e diz respeito à posição da parte na relação material controvertida, isto é, uma posição substancial de vantagem nessa referida relação. Essa posição corresponde à titularidade de um direito subjectivo, aqui na sua vertente activa (art.9º CPTA).
O Prof. Vasco Pereira da Silva diz titular desse direito quando “uma norma jurídica não visa apenas a satisfação do interesse público, mas também, a protecção dos interesses dos particulares”. O Prof. não distingue entre interesses legítimos e direitos subjectivos, em razão da sua natureza, defende que se deve fazer um tratamento unificado dessas posições.
O domínio subjectivo no processo administrativo é acentuado com a referência à legitimidade passiva, no art.10º CPTA, para além das entidades públicas são, também, sujeitos passivos todos aqueles que tiverem direitos inversamente correspondentes aos alegados pelo Autor.
Com a Reforma do Contencioso Administrativo, surgiu uma perspectiva “aberta” da relação administrativa, adoptando-se uma dimensão multilateral, abandonou-se a solução “clássica” que assentava numa lógica bilateral, e passou a envolver-se diferentes autoridades públicas e particulares, não só aqueles que são imediatamente destinatários dos actos administrativos. Esses titulares são assim, sujeitos autónomos com direitos e deveres recíprocos numa relação multifacetada. Prof. Paulo Otero, neste sentido, afirma que “o progressivo e silencioso alargamento dos interessados a quem o eventual provimento de um cada vez maior número de recursos graciosos e contenciosos irá directamente prejudicar faz com que os contra-interessados ganhem especial importância na moderna dogmática jusadministrativista”. Nesta nova dinâmica em que os terceiros não foram indiferentes, verificou-se uma densificação das garantias destes sujeitos que estão em confronto directo com a Administração Pública.
Contudo, parece relevante desenvolver a questão da base constitucional que fundamenta o protagonismo dado aos contra-interessados.
Deparamo-nos, desde logo, com o art.20º e 268º/4 da Constituição da República Portuguesa, doravante CRP, que permite garantir a cada direito material uma reacção processual eficaz contra a ingerência ilícita dos poderes públicos na esfera do indivíduo. Este princípio da tutela jurisdicional efectiva, que esteve na base da Reforma do Contencioso, veio valorizar a posição dos cidadãos face aos poderes da Administração através do reforço dos direitos e protecção jurisdicional. O princípio em questão refere-se não só a direitos subjectivos, bem como a interesses legalmente protegidos. Mais uma vez, para o Prof. Paulo Otero a tutela tem de ser garantida por um “qualquer meio de intervenção processual”.
Outro principio constitucional aqui a invocar, é o principio do contraditório, art.32º/5 CRP, pois exige a presença de todos os interessados que irão ser afectados pela sentença, impossibilitando que os terceiros não chamados a intervir no processo possam ficar vinculados a tal pronúncia jurisdicional, uma vez que ficaram impedidos de contra-argumentar, e logo, de intervir na decisão final do litigio. O princípio de igualdade de armas está também relacionado, e vem no próprio CPTA referenciado, art.6º.
Contra-interessados começa por não ser a expressão mais adequada, uma vez que estes sujeitos são partes principais do processo e estão numa posição paritária face ao Autor e à parte demandada. O art.10º in fine do CPTA mostra, embora não claramente, que estes “terceiros” têm um verdadeiro estatuto de parte demandada em juízo, como defende Mário Aroso de Almeida. Mas já quando trata das acções especial de impugnação do acto administrativo, o art.57º CPTA vem abordar a legitimidade dos contra-interessados na acção.
Existem três critérios de identificação dos contra-interessados, referenciados pela doutrina, para auxiliar a interpretação da norma. Primeiramente, o critério do acto impugnado, que diz que quem seja titular de um interesse qualificado na conservação do acto impugnado é considerado contra-interessado. Depois, a teoria da posição substantiva do terceiro que se dirige a quem tenha interesse pessoal, directo e actual contraposto ao do Autor da acção. E por fim, o critério que assenta nos efeitos da sentença, este significa que depois de um juízo de prognose, é contra-interessado quem na sua esfera jurídica for afectado pela pronúncia jurisdicional que virá a ser adoptada.
A doutrina tem-se dividido quanto ao critério a seguir. Paulo Otero, acompanhado por Francisco Paes Marques, defende que a posição jurídica do contra-interessado surge do resultado previsível da equação entre o status quo anterior à impugnação e as possíveis desvantagens da sentença. Alexandra Leitão opõem-se a este critério que diz ser “cronologicamente invertido”. O art.57º CPTA adopta um critério misto, referindo a posição substantiva para infirmar os anteriores.
Na acção de condenação à prática do acto devido, com o mesmo sentido do art.57º CPTA, vem o art.68º do mesmo código, expressar a obrigação legal de chamar ao processo os contra-interessados, assim quando o objecto do litigio consista na pretensão de condenação da Administração à prática do acto administrativo ablativo, cuja incidência se materialize directamente nas esferas de outros particulares específicos, tais são consideram-se contra-interessados. Aqui o interesse protegido legalmente corresponde a exigir uma obtenção que é: a não prática do acto.
Posto isto, e no seguimento de Vieira de Andrade, a lei também lhes atribui qualquer poder dispositivo, não devendo mais intitulados de terceiros.
Os contra-interessados devem ser indicados pelo Autor, esse que tem tal ónus, sob pena de ilegitimidade passiva que vai obstar ao conhecimento do mérito da causa, segundo os artigos 78º/2 alínae f), 81º/1 e 89º/ f) do CPTA. É também consequência a inoponibilidade de decisões jurídicas proferidas à revelia dos contra-interessados, art.155º/2 do CPTA também. Os aspectos especiais, tendo em conta a situação destes sujeitos, são a publicação de anúncio e a apresentação da contestação no prazo de 15 dias, art.82º/1 e 83º/5 do CPTA, respectivamente. Podem ainda, anuir ou opor-se em despacho liminar [art.87º/1 alínea b)] ou requerer audiência pública, nos termos do art.91º/2, ambos do CPTA.
Discute-se, também se os contra-interessados beneficiam da ficta confessio do art.83º/4 CPTA. A doutrina tem entendido que este sujeito tem um ónus de impugnação factual face a eventuais posições autónomas adoptadas no domínio da autonomia argumentativa que processualmente lhe é garantida.
Outra questão é o assentimento a dar pelo contra-interessado numa transacção entre o Autor e a autoridade demandada: quanto a isto a doutrina vai no sentido afirmativo, devendo exigir-se enquanto intervenção de parte.
Considera-se importante abordar o fundamento dado por Paulo Otero na tutela dos contra-interessados, este que adopta um quadro dicotómico.
Por um lado, a razão de índole subjectivista significa que o contra-interessado é chamado ao processo, porque segundo a lei, é titular de interesses que podem ser prejudicados com o provimento da acção. Estes sujeitos têm posições jurídicas subjectivas passíveis de serem lesadas. Por outro lado, a razão com carácter objectivo, fala da limitação da eficácia subjectiva das decisões judiciais, excluindo do âmbito dos seus efeitos todos os particulares que não foi assegurada a possibilidade de intervenção no processo. Neste seguimento, não se exige uma efectiva intervenção processual dos contra-interessados, apenas que esta tenha sido possível: o contra-interessado não tem que intervir, tem que lhe ser garantido esse poder de intervir.
Conclui o Professor, posição mais aceitável, que estamos perante um litisconsórcio necessário passivo, com o objectivo de uma unidade do sistema jurídico e um exercício eficaz da função dos tribunais, garantindo assim a intervenção efectiva dos contra-interessados. Consequentemente, a falta da respectiva identificação ou citação conduz à ilegitimidade passiva acima referida. Para este Autor, quem não intervém também não pode ser prejudicado pela sentença!
Concluindo, podemos constatar que as relações jurídicas em sede do direito administrativo são multipolares, há assim um conjunto de pessoas cujos interesses são afectados pela actuação da Administração, e é aqui que se centra a especificidade dos contra-interessados. Estes são sujeitos num litígio em que os seus interesses coincidem com os da Administração e podem ser afectados com a procedência da acção.
Aos terceiros que assumem uma maior acuidade no processo administrativo do que no Processo Civil, cabe distinguir finalmente os sujeitos contra-interessados daqueles que são apenas terceiros (art.10º/8 CPTA e art.320ºCódigo Processo Civil, doravante CPC). Os contra-interessados não podem ser confundidos como substitutos da Administração.
Ao contrário do disposto na lei anterior, pressupõem-se que estes sujeitos formem litisconsórcio necessário passivo com a entidade demandada, e na sua falta a previstas consequências. Existe assim uma lógica horizontal, como defende Rui Machete, relativamente ao Autor da acção. Esta lógica não parece ser automaticamente transponível do Processo Civil, com base no evidente confronto do art.10º/1 CPTA e art.28º/2 CPC.
As críticas da inovação do legislador nesta matéria centram-se, essencialmente, na previsão da norma de legitimidade ser excessivamente ampla, deixando muito “em aberto”, segundo Prof. Vasco Pereira da Silva; o que nos leva à necessidade da intervenção da jurisprudência, para solucionar a interpretação, e num futuro próximo do próprio legislador!
Elementos Bibliográficos:
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise,Coimbra, Almedina, 2009
ANDRADE, Vieira de, A Justiça Administrativa, Coimbra, Almedina, 2007
ALMEIDA, Mário Aroso de, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra, Almedina, 2007
OTERO, Paulo, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Rogério Soares
terça-feira, 18 de maio de 2010
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