A matéria da necessidade ou não do recurso hierárquico necessário, como única via para se chegar ao recurso contencioso, tem, desde há muito, suscitado uma das grandes discussões do direito administrativo.
Com efeito, já antes da Revisão Constitucional de 1989, o Prof. Vasco Pereira da Silva considerava que a obrigatoriedade do recurso hierárquico necessário como única via de se chegar a uma “decisão não administrativa” era inconstitucional uma vez que violava diversos princípios constitucionais, nomeadamente: da plenitude da tutela dos direitos dos particulares, da separação entre a administração e a justiça, da efectividade da tutela e a desconcentração administrativa. Contudo, nem toda a doutrina (e jurisprudência) via o problema desta forma, por exemplo, o Prof. Aroso de Almeida considerou que não era inconstitucional a exigência de recurso hierárquico uma vez que não é à Constituição que cabe estabelecer os pressupostos de que depende a impugnação (contenciosa) de actos administrativos.
Importa agora referir o regime que constava da LPTA. Segundo aquele regime, os particulares apenas poderiam recorrer (à via judicial) quanto a actos administrativos definitivos e executórios, ou seja, dos actos que punham fim a um procedimento administrativo, que autoritariamente decidiam uma situação jurídica individual e concreta, culminando-os nos planos horizontal, vertical e material.
Este regime começou a ficar fortemente posto em causa com a já referida Revisão Constitucional de 1989, já que esta alterou significativamente o paradigma do acto administrativo recorrível. Assim, o acto administrativo recorrível já não é aquele que é definitivo e executório, mas aquele que é lesivo dos direitos e interesses legítimos dos particulares. Simplificando, deixou de ser constitucionalmente admissível impor ao particular o prévio esgotamento das vias administrativas como única forma de acesso aos meios contenciosos.
A Revisão Constitucional associada à posterior alteração de regime operada pelo CPTA, consagrando a impugnabilidade contenciosa de qualquer acto administrativo susceptível de lesar direitos e interesses legalmente protegidos (51/1 CPTA), a atribuição de um efeito suspensivo ao prazo de impugnação contenciosa do acto administrativo associada à utilização de garantias administrativas (59/4 CPTA) e o estabelecimento da regra segundo a qual mesmo quando o particular recorre a uma garantia administrativa (suspendendo-se, então, o prazo de impugnação contenciosa), isso não o impede de recorrer a uma imediata impugnação contenciosa do acto administrativo (59/5 CPTA). Esta alteração de regime leva-nos a pensar que o CPTA afastou a necessidade do recurso hierárquico como um pressuposto de impugnação contenciosa dos actos administrativos.
Todavia muitas normas, ditas especiais quando em comparação com a “regra geral” do CPTA, continuam a exigir o recurso hierárquico como pressuposto do recurso contencioso. Assim, e mais uma vez, quando parecia que a Revisão Constitucional e a posterior reforma do Contencioso administrativo tinham vindo “acalmar” uma das mais “apaixonadas” discussões doutrinais e jurisprudenciais, eis que surgem ainda mais questões. Continuará ainda o recurso hierárquico a ser necessário? As ditas normas especiais foram revogadas pelo CPTA? Violarão estas mesmas normas especiais os princípios constitucionais, ainda mais depois da revisão constitucional?
Voltando a citar Aroso de Almeida, o referido Professor entende que o CPTA não tem o alcance de revogar as regras legais avulsas que exigem o recurso hierárquico como forma de partir para a via contenciosa, tal só poderia acontecer se houvesse disposição expressa a determinar que todas elas se encontravam revogadas, a partir da entrada em vigor daquele Código, até porque “lei geral não revoga lei especial” (art. 7/3 CC), salvo se for outra a intenção expressa do legislador. Assim, poderá continuar a existir a exigência de recurso hierárquico necessário, não só quando a lei o disser expressamente, mas também em todos os casos, anteriores à vigência do CPTA, em que são contempladas impugnações administrativas, sendo que elas são tidas como necessárias. Este entendimento do Professor é seguido por grande parte da jurisprudência.
Contudo, o Prof. Vasco Pereira da Silva entende que tal não faz sentido uma vez que se a “regra geral” da necessidade do recurso hierárquico desapareceu do CPTA, não faz então sentido haver conciliar aquelas regras especiais uma exigência, que “em geral” já não existe, dado que basta para o acto ser recorrível que ele lese “direitos ou interesses legalmente protegidos”.
Acrescenta ainda o Professor que aquelas normas caducaram (e não que foram revogadas), a razão da existência do recurso hierárquico necessário era permitir aos particulares acederem à via contenciosa, tal exigência foi suprimida pelo CPTA, dado que o prévio esgotamento da via graciosa antes de recorrer à via contenciosa deixou de ser um pressuposto processual para a impugnação de actos administrativos, logo não se pode considerar que a necessidade do recurso hierárquico que permaneceu nas leis avulsas possa ter consequências processuais, assim deveremos considerar, na esteira do Professor, que tais normas caducaram.
Por último, a Revisão Constitucional e a reforma do contencioso administrativo operada, em grande medida pelo CPTA, visaram eliminar obstáculos inúteis ao particular no acesso à via contenciosa (até porque a maioria das vezes os superiores hierárquicos limitam-se a confirmar decisões dos subalternos, dado que estes se viciaram em práticas administrativas emanadas daqueles), donde podemos retirar que este recurso hierárquico é uma diligência inútil e apenas um obstáculo no acesso à justiça. Assim, as normas especiais que consagram um recurso hierárquico não podem deixar de ser vistas como incompatíveis com a CRP dado que limitam o acesso à justiça; acesso esse que a RC 1989 visou facilitar e agilizar.
Assim, na senda do Prof. Vasco Pereira da Silva, entendemos que o recurso hierárquico não é mais necessário, contudo ele poderá ser útil, se o particular entenda, pelas suas próprias razoes, que será mais brando accionar a via do recurso hierárquico do que a do recurso contencioso, até porque poderá ver o superior hierárquico dar-lhe razão e assim poupar tempo e custos, pelo contrário, se vir o superior hierárquico apenas confirmar o acto do subalterno, ele terá sempre a via contenciosa para recorrer dado que o seu recurso hierárquico suspende os prazos para o recuso contencioso.
Em suma, desapareceu a necessidade de qualquer recurso hierárquico, uma vez que este não é necessário para aceder ao contencioso administrativo, e mesmo que o particular decida recorrer à via graciosa ele não necessita esperar pelo resultado dessa diligência para poder impugnar o acto. Assim, as garantias administrativas passaram a ser facultativas porque deixaram de se constituir como pressupostos processuais para a via contenciosa. Pensamos, contudo, que uma crítica deve ser feita ao legislador. Parece, sem dúvida, ter sido a sua intenção eliminar o recurso hierárquico como pressuposto processual para o acesso à via contenciosa, por isso, a solução mais adequada teria sido a revogação expressa daquelas disposições (especiais), por uma questão de certeza e de segurança jurídica para os particulares, dado que devemos considerar que aquelas normas caducaram.
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