terça-feira, 27 de abril de 2010

A Aceitação do Acto Administrativo

A aceitação do acto administrativo está consagrada na ordem jurídica portuguesa nos artigos 56º do CPTA e 53º/4 do CPA, surgindo como instituto que impede o indivíduo aceitante de impugnar o acto por ele aceite. Apresenta-se assim, à primeira vista, como requisito negativo de interposição de recurso por parte do sujeito aceitante. Fundando-se numa manifestação de vontade de concordância com o conteúdo de um acto, pressupõe um comportamento comunicativo que exprima a vontade do particular, que é valorada pelo Direito. A lei determina a produção de um efeito – a perda da faculdade impugnar – perante a verificação de um acto jurídico, independentemente do conteúdo da vontade do agente quanto à produção desse resultado. Exige-se uma vontade espontânea e sem reserva, mas os efeitos preclusivos da aceitação não têm de ser queridos pelo aceitante. Pode-se afirmar, como Vieira de Andrade[1] refere, que a lei ficciona a renúncia à impugnação, desde que haja aceitação livre dos efeitos do acto.
O respeito pelo princípio da legalidade e o direito fundamental à impugnação de actos administrativos expressamente consagrado na Constituição (268º/4 CRP) não podem deixar de ser tidos em consideração quando analisamos a figura da aceitação do acto, pois esta limita, por efeito dos preceitos legais, o direito à impugnação de actos. É importante indagar as motivações subjacentes à positivação do instituto da aceitação pois, por um lado, quando se fixam as razões que levaram o legislador a restringir os valores referidos está a relevar-se a existência de outros princípios que justificam tal restrição e, por outro, estes contra-fundamentos servem para limitar os casos em que se pode conceber a existência de uma aceitação do acto administrativo.
Identificamos dois fundamentos essenciais da aceitação do acto: a segurança jurídica[2] e o princípio da boa-fé. A primeira é um princípio basilar do ordenamento jurídico e uma concretização específica do princípio do Estado de Direito Democrático, que postula uma certeza, estabilidade e previsibilidade na realização do Direito. A aceitação com efeito preclusivo da destruição do acto aceite contribui para a sua permanência na ordem jurídica e, assim, permite esta estabilidade jurídica. Ainda que, muitas vezes, para o sujeito aceitante que vê precludida a possibilidade dessa destruição, não esteja em causa um acto constitutivo de direitos, este pode sê-lo para terceiros ou representar um garante da prossecução de determinados interesses públicos.
A boa fé é um princípio que dita que os sujeitos de direito devem ter, nas suas relações, comportamentos correctos, leais e éticos e que encontra forte projecção na tutela de expectativas e na protecção de confiança gerada nos outros. Está previsto no 266º/2 da CRP e no 6º-A do CPA como princípio estruturante da actividade administrativa e vincula, não só a Administração, mas também todos os particulares que com ela se relacionem. A concepção de uma Administração autoritária tem-se esbatido com a convocação, cada vez mais frequente, dos particulares a intervir na tomada da decisão pública, e é neste contexto que se deve encarar a boa fé como um conjunto de deveres acessórios que as partes devem respeitar no âmbito de uma relação jurídica administrativa. Desta forma, a figura da aceitação como manifestação de vontade de um sujeito de concordância com o conteúdo de um acto encontra fundamento na boa fé, porque o indivíduo que a presta não pode agir em contrariedade com tal declaração, sob pena de pôr em causa expectativas e investimentos de confiança que os destinatários ou terceiros interessados tenham feito a partir de tal comportamento. Sendo a Administração Pública a principal destinatária do acto de aceitação, será primacialmente face a ela que se deverá tutelar a confiança, pelo que este instituto visa assim também garantir a prossecução do interesse público.
Uma concretização da boa fé ligada à protecção da confiança legítima que pensamos fundamentar especificamente a aceitação do acto é a proibição do venire contra factum proprium, que não permite que se adopte uma conduta com um certo sentido e, posteriormente, se venha adoptar uma outra em sentido contrário. Consiste numa proibição de comportamentos contraditórios, que se justifica pelo facto de, desse modo, não se frustrar a confiança gerada em relação ao sentido dum primeiro comportamento. No caso da aceitação, uma eventual impugnação do acto aceite, corresponderia a uma conduta contrária à inicialmente praticada, pelo que se frustrariam as expectativas daqueles que acreditaram que o sujeito aceitante não iria pôr em causa o conteúdo do acto aceite. Seguimos assim Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira[3], que consideram tal impugnação como um venire contra factum proprium.
Esclarecidos os fundamentos da figura, vamos analisar a caracterização da aceitação ao nível do processo administrativo. Pode discutir-se se a perda do direito de iniciativa do requerente se trata de perda de legitimidade, de falta de interesse em agir ou de um pressuposto processual autónomo. Sabemos que, tanto no CPA (artigo 53º), como no CPTA (artigo 56º), ela vem inserida no âmbito da legitimidade processual. Isto faz com que a maioria da doutrina[4] e a jurisprudência a configurem como um requisito negativo de legitimidade. Para outros autores, porém, trata-se de um pressuposto processual autónomo[5] e para Vasco Pereira da Silva[6] configura-se como uma falta de interesse em agir processualmente.
A legitimidade activa consiste no pressuposto processual através do qual a lei selecciona os sujeitos de direito admitidos a participar no processo levado a tribunal e decorre do 9º do CPTA. Baseia-se na titularidade da relação jurídica controvertida ou na titularidade de um interesse difuso para a acção popular.
O interesse em agir, por outro lado, consiste no interesse do recorrente em obter a tutela judicial de uma situação através do uso de determinado meio processual. Trata-se de aferir a utilidade que o sujeito tem no recurso à via judicial, ou seja, saber se tem uma necessidade de protecção judicial para tutelar os seus direitos e se, ao mesmo tempo, retira uma utilidade na procedência do pedido. O recorrente deve ter um interesse real e actual quando se socorre dum meio processual junto dos tribunais para fazer valer a sua posição jurídica substantiva. O fundamento do interesse em agir como pressuposto processual é a economia processual, pois visa-se evitar que sejam impostos custos e incómodos ao tribunal numa situação que não carece de tutela e que sejam forçadas a vir a juízo pessoas para defender os seus interesses numa situação em que não há necessidade.
Apesar de, no Processo Administrativo, o interesse em agir vir apenas referido a propósito das acções administrativas de simples apreciação (artigo 39º do CPTA), a doutrina tem entendido recentemente que é um pressuposto processual de impugnação geral no contencioso administrativo. Não há razão para delimitar a legitimidade com base num interesse em agir, como já foi feito no passado, fazendo sentido sim autonomizá-lo como pressuposto ao nível do Processo Administrativo[7].
Analisando, então, a possível recondução da aceitação ao pressuposto do interesse em agir, não nos parece haver fundamento para assimilar as figuras. Relacionando-se a aceitação com um acto com aspectos desfavoráveis que lesam direitos do sujeito, parece que este terá sempre necessidade de protecção judicial pois dela retirará sempre uma utilidade. Assim sendo, haverá sempre interesse em agir da parte do sujeito aceitante, razão pela qual não parece possível considerar a figura como um requisito negativo de interesse em agir. A aceitação funda-se num acto de vontade do sujeito e na inadmissibilidade de comportamentos contraditórios, pelo que a utilidade da acção pode perfeitamente subsistir após a aquiescência.
Vamos, então, verificar se é possível reconduzir a aceitação a um requisito negativo de legitimidade. Se averiguarmos os motivos subjacentes à não impugnação no caso da ilegitimidade, verificamos que tal sucede porque o recorrente não é titular de uma posição jurídica substantiva. Já relativamente à não impugnabilidade devido à aceitação do acto, vemos que a razão não é a mesma, pois neste caso a não impugnação deve-se a uma autovinculação do sujeito a um comportamento inicial de concordância com um acto que o impede de contestar depois. Aliás, esta norma legal específica (única no contexto das ordens jurídicas mais próximas) acerca da aceitação seria completamente inútil se a interpretássemos como uma faceta da legitimidade processual. Na verdade, se para a aceitação tácita do acto relevassem apenas os factos que implicassem a extinção do interesse directo, pessoal e legítimo, as normas da aceitação nada acrescentariam, uma vez que a legitimidade, entendida precisamente como interesse directo, pessoal e legítimo, tem de se manter durante todo o processo. Se o indivíduo praticar um facto que extinga o seu interesse na anulação do acto, haverá uma ilegitimidade superveniente que produz efeitos independentemente da existência da norma relativa à aceitação.
Afastadas estas duas possibilidades, subsiste a hipótese de autonomizar a aceitação como um pressuposto processual autónomo, como Vieira de Andrade e Carlos Cadilha. A construção da aceitação do acto como pressuposto processual autónomo, que implica uma inadmissibilidade valorativa do recurso, não provoca uma restrição inconstitucional do direito fundamental a uma tutela judicial efectiva dos administrados, pois há valores constitucionalmente relevantes que justificam o condicionamento e restrição do direito de acesso aos tribunais administrativos, desde que no âmbito da legislação competente para a respectiva ordenação processual.
Integramos assim esta figura no âmbito dos pressupostos relativos às partes. Neste caso, o pressuposto surge formulado pela negativa, exigindo-se que o recorrente não se encontre na posição de ter aceite um acto. Esclareça-se, porém, que a aceitação do interessado não sana a invalidade do acto, apenas impede que aquele que o aceitou, expressa ou tacitamente, dele recorra contenciosamente, sem obstar ao direito de recurso de outros interessados.
Em conclusão, defendemos que a aceitação é um acto jurídico que implica a perda de todos os meios processuais cujo uso revelaria um venire contra factum proprium em relação a uma orientação inicial de aquiescência espontânea, livre e sem reserva, e que contribui desta forma para a estabilização dos efeitos do acto na ordem jurídica.
[1] Cfr. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Aceitação do Acto Administrativo, in BFD – Volume Comemorativo, 2003
[2] Considerando a aceitação como homenagem ao valor da segurança jurídica, SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, 1987. Para PAULO OTERO, prevalecem os valores da segurança e da confiança sobre o direito fundamental de acesso à justiça na aceitação, in Legalidade e Administração Pública, o Sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade, 2003.
[3] Cfr. Código de Processo dos Tribunais Administrativos, vol. I, 2006.
[4] Neste sentido, SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, 1987; MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, vol. I, 1991; RUI MACHETE, Sanação do Acto Administrativo Inválido, DJAP, vol. VII; MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/ PEDRO COSTA GONÇALVES/J. PACHECO AMORIM, Código de Procedimento Administrativo Anotado, 1997; PAULO OTERO, Legalidade e Administração Pública, o Sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade, 2003; e DIOGO FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo, vol. IV, 1988.
[5] Neste sentido, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Aceitação do Acto Administrativo, in BFD – Volume Comemorativo, 2003; e CARLOS CADILHA, A Aceitação da Nomeação versus Aceitação do Acto Administrativo, in CJA n.º 37, Jan/Fev 2003.
[6] Cfr. O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2005.
[7] Neste sentido, VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2005; MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2003; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), 2004.
Ana Teresa Faria n.º16500 Sub-turma 5

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