quinta-feira, 29 de abril de 2010

A "excepção" alemã

Nos países que adoptaramo modelo europeu-continental, em contraposição com o modelo anglo-americano, o Direito Administrativo tem uma amplitude mais lata, abrangendo aquilo que Rivero chama de "Direito Administrativo descritivo", preocupando-se em delimitar o estatuto dos órgãos públicos administrativos do Estado e das colectividades locais, a estrutura dos serviços públicos e os mecanismos dos procedimentos referentes a certas actividades (a sua fonte é a lei e o regulamento). O Direito Administrativo rege as relações jurídicas que nascem da acção da Administração, fixa suas prerrogativas e obrigações, rege as garantias outorgadas aos particulares contra o arbítrio (em França a sua fonte é a jurisprudência). A autonomia do Direito Administrativo é neste modelo o resultado da criação de um corpo de regras e princípios próprios, originais, sendo em relação ao direito comum derrogatório. Não se contenta em considerar problemas não propostos no direito privado, procurando resolvê-los fazendo apelo a noções que o próprio direito privado ignora (utilidade pública, interesse público), e, para além disso, quando surgem problemas comuns ao direito privado (decorrentes de contratos por exemplo), o Direito Administrativo dá soluções diferentes das propostas pelo Direito Civil. Contudo, apesar das semelhanças e da existência de raízes comuns relevantes, a verdade é que a autonomia e originalidade da matriz germânica é evidente.

Enquanto em França o Direito Administrativo surgia após a Revolução de 1789, rompendo com o sistema anterior, na Alemanha não houve necessidade de tão grande e abrupta ruptura. O Direito Administrativo foi resultado de várias experiências e transformações que não se processaram de igual modo nem à mesma velocidade nos diferentes Estados. Como afirma Fritz Fleiner, a transformação “não se desenrolou segundo um ritmo uniforme nos diferentes Estados alemães, e em nenhuma parte o velho direito foi em algum momento totalmente eliminado para ser substituído por um direito novo; constata-se, em cada período, a subsistência de reminiscências jurídicas de concepções passadas. Mas em cada um desses períodos, a situação do poder público em relação aos sujeitos e em relação ao direito é determinada por uma concepção nova, que se afasta das tendências anteriores”.

Na Idade Média, a protecção jurídica para a Administração e para o particular eram iguais, sujeitando-se às instâncias jurisdicionais dos tribunais. No entanto, cabia ao Príncipe um direito eminente (jus eminens), composto por uma série de prerrogativas e poderes que devia exercer no interesse da colectividade. Numa fase posterior, ampliou-se o poder do Príncipe, constituindo-se o jus politiae (direito de polícia) que, partindo da ideia de poder sobre a vida religiosa e espiritual do povo, acabou por concentrar, na mesma pessoa, poderes de interferir na vida privada dos cidadãos, encapotado pelo argumento da segurança e do bem-estar colectivo. Neste período ocorreu ainda uma separação entre polícia e justiça: enquanto que as primeiras diziam respeito à Administração e podiam ser aplicadas pelo Príncipe, as segundas podiam apenas ser aplicadas pelos juízes não sendo abrangidas pelas suas competências. Não era assegurado qualquer direito de apelo aos tribunais por parte dos particulares.

Em resposta a esta fase absolutista, foi elaborada a Teoria do Fisco que considerava que o património público não pertencia nem ao Príncipe nem ao Estado, mas sim ao Fisco. O Fisco era considerado como uma pessoa de direito privado, com personalidade diversa da do Estado, estando submetido aos comandos do direito privado e aos tribunais judiciais. O Estado, enquanto pessoa de direito público, regia-se pelas normas editadas pelo Príncipe que não estavam sujeitas a qualquer controlo jurisdicional por parte dos tribunais. Estes tribunais passaram a reconhecer, em favor do indivíduo, a titularidade de direitos contra o Fisco, todos eles fundamentados no direito privado. Efectivamente, parecia não haver outro direito além do direito civil.

Como analisa Otto Mayer, “o resultado foi que nesse período do regime de polícia existiu efectivamente um direito civil, um direito penal, um direito processual; numa palavra: o direito de justiça. Contudo, em relação à Administração não existiam regulamentos obrigatórios para o exercício da autoridade frente ao súbdito: não há direito público. No Estado Moderno conservou-se do regime de polícia a ideia de soberania do Estado e, embora tendo sido elimina o dualismo entre Estado e Fisco, manteve-se a ideia de submissão de uma parte da actividade estatal ao direito civil. Por outro lado, deixou este de ser o direito único, pois desenvolveu-se o direito público, em especial o Direito Administrativo, para reger as relações entre o Estado e os administrados, passando o direito civil a ter uma aplicação meramente subsidiária".

É importante voltar a frisar que, embora o direito público alemão tivesse sofrido influência do direito francês, foi diversa a origem do seu direito administrativo e a sua própria formação: o Direito Administrativo em França foi produto de elaboração pretoriana do Conseil d'État, desenvolvida para atender a necessidades puramente práticas, surgidas em cada caso concreto; diferentemente, na Alemanha, predominou a elaboração sistemática e científica, mais abstracta, a cargo da doutrina. No direito alemão, a influência do direito civil foi muito maior na elaboração do Direito Administrativo do que ocorreu no direito francês. Neste houve uma tendência obsessiva de rejeição em bloco de normas do direito privado, construindo-se o Direito Administrativo como conjunto de normas derrogatórias e exorbitantes do direito comum, enquanto na Alemanha a sistematização do direito administrativo, por ideias herdadas do Estado de Polícia, seguiu muito mais a orientação adoptada pelos pandectistas na interpretação do Código Civil. Daqui resulta que, apesar de homónimos, quer o "Droit Administratif" quer o "Verwaltungsrecht", a sua aplicabilidade prática consubstanciou-se e concretizou-se em moldes bastante diferentes. Na Alemanha, contrariamente ao que sucede em França, o "Droit Administratif" não significa uma espécie particular de Direito. Para Fritz Fleiner, “no sentido mais amplo, o “Direito Administrativo” designa todas as normas que regulam a actividade das autoridades estatais administrativas, quer façam parte do direito público ou do direito privado. Mas a ciência do direito não entende a noção dessa maneira tão ampla. Ela parte da consideração de que as normas particulares não foram elaboradas pela Administração Pública senão nos casos em que as normas gerais do direito privado, do direito penal e do processo não podem proteger, pelo menos de maneira suficiente, em razão do modo mesmo pelo qual elas são concebidas, os interesses especiais da administração pública”. Acrescenta o mesmo autor que se entenderá por Direito Administrativo “o direito público estabelecido na medida das necessidades da administração pública”. A relação de parentesco entre o Direito Administrativo alemão e francês é como a de dois irmãos: um francês, mais velho, que sofre ainda hoje os excessos da sua infância, e um alemão, mais novo, que logo na adolescência deixou de olhar com admiração para o seu irmão mais velho, partindo em busca de si próprio, de forma solitária, sofrendo reveses (inevitáveis desta rebelião), porém certo que iria conseguir transformar o que havia aprendido em algo de concreto (é disto exemplo a Constituição de Bonn de 1949). Hoje é indubitável a relevância da herança germânica e o impacto que teve (e ainda tem), quer a nível interno, quer mais recentemente, a nível da UE.

A Alemanha começou por experimentar o modelo judiciarista (ou quase-judicialista) que consistia numa forma de justiça delegada, onde a resolução dos litígios relativos à Administração cabia a autoridades judiciárias (chamados de "tribunais administrativos"), órgãos administrativos independentes, "quase-tribunais" que não se integravam na estrutura dos tribunais judiciais. Havia uma certa confusão e até promiscuidade (ou "pecado original") na relação estabelecida entre função administrativa e jurisdicional. Parafraseando o Professor Vasco Pereira da Silva "aquilo que se criou em nome do princípio da separação entre autoridades administrativas e judiciais não foi a separação mas a confusão entre o poder administrativo e o judicial, o que se erigiu foi um sistema em que o administrador era juiz e o juiz era administrador". Exemplo deste modelo intermédio foi a experiência do Geheimer Rat na Constituição de Württemberg de 1819. Na primeira metade do século XIX predominava nos vários Estados germânicos a figura do administrador-juiz, na figura da justiça reservada. Esses órgãos especiais eram os Verwaltungsrechtspflege (meios de garantia administrativa). Por esta razão, e de forma divergente do que sucedia em França onde se procurava acentuar o auto-controlo da Administração, na Alemanha o controlo jurisdicional era sucessivamente adoptado pelos diversos Estados alemães (exemplo disto era o § 182.º da Constituição de Frankfurt: "os meios de garantia administrativa terminaram, agora os tribunais decidem todas as lesões de direitos"). O papel dos tribunais desenvolveu-se de forma algo precoce em solo germânico (quando comparado com o que sucedeu em França), muito por influência O. Bähr que promoveu a ideia do Estado de Direito (Rechtsstaat), a efectividade do Direito e da Lei, enquanto garantes da protecção dos particulares, exigindo para isso a sujeição da actividade da Administração ao controlo judicial. Essa fiscalização acabou por ser confiada, não aos tribunais comuns, mas a tribunais especiais: os tribunais administrativos (Gneist).

Contudo, a evolução foi dispare: no norte da Alemanha vigorava o sistema do administrador-juiz na sua modalidade da justiça delegada. Na Prússia predominava assim um sistema autoritário, predominantemente objectivista, semelhante ao modelo francês (havia um auto-controlo da Administração). No sul da Alemanha começou a caminhar-se mais cedo para a jurisdicionalização do Contencioso Administrativo. A matriz subjectiva, mais virada para a protecção dos direitos dos particulares (tal como havia dito supra) foi alimentada pelas influências determinantes de O. Bähr e Gneist. A diferença entre estes dois sistemas "cifrava-se na contraposição entre o "princípio da enumeração", que limitava os actos sindicáveis, associado a um controlo total da legalidade (no norte), e um "princípio de definição", que admitia a sindicabilidade universal dos actos, associado a um controlo limitado à lesão de direitos e, portanto, menos intenso no que respeita ao controlo da discricionariedade (no sul)" (Vieira de Andrade).

Em França, a fase do "baptismo" (da jurisdicionalização) do Contencioso Administrativo pautou-se pela paulatina libertação do "cordão umbilical" que ligava a tribunais e Administração. A ideia de Justiça Administrativa começava a ganhar forma e o "milagre" da sujeição do Estado ao Direito (que ele próprio cria). Estado passa a ser um "sujeito" e não "dominus" do Direito. Para Vasco Pereira da Silva o verdadeiro milagre não seria o do Estado passar a estar submetido ao Direito, "mas sim o facto de uma instituição, que nasceu com o objectivo de proteger a Administração do controlo dos tribunais, se ter transformado num verdadeiro tribunal através da sua actuação, e de ter dado simultaneamente origem ao Direito Administrativo, cujo fim não é a defesa da Administração mas a garantia dos direitos dos particulares" (Vasco Pereira da Silva dá conta da existência, não de apenas um milagre, mas de um “duplo milagre”). Em solo alemão, após a Primeira Grande Guerra (1914-1918), a Constituição de Weimar (1919) consagrou um sistema plenamente jurisdicionalizado e de matriz subjectiva. Este percurso foi alvo de um duro revés com a ascensão de Adolf Hitler (líder do NSDAP) ao poder que levou à instituição do regime Nacional-Socialista de matriz totalitária e pendor eminentemente anti-semita. Todos os passos dados pelos subjectivistas que pretendiam a proteger e garantir os direitos dos particulares face às actuações administrativas ficaram em standby, entorpecidos até 1945. Durante o interregno, "pecado" voltou a ser a palavra de ordem nas relações que se estabeleciam entre a Administração e a Justiça através da instituição de um contencioso objectivista e com a contaminação política dos tribunais. O "Herrschaft" que a Administração exercia face aos tribunais verificava-se pela falta de garantias de isenção e independência dos tribunais administrativos, tornando-se por demais evidente com a "politização do controlo" operada pelo NSDAP que alargou exponencialmente o número de "actos políticos" contenciosamente insindicáveis.

Com o final da Segunda Grande Guerra, a República Federal Alemã (RFA) torna-se pioneira na Constitucionalização de uma Justiça Administrativa jurisdicionalizada (nomeadamente no seu "königliche Artikel" 19 § 4) e com a finalidade de protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares. A codificação em matéria de Contencioso Administrativo foi uma consequência lógica da Constitucionalização da Justiça Administrativa e ocorreu em 1960 com a Lei dos Tribunais Administrativos (VwGO: Verwaltungsgerichtsordnung).

A fase da "confirmação" do Contencioso Administrativo, na sua dupla dimensão jurisdicional (juiz é completamente independente e tem plenos poderes sobre a Administração) e subjectiva (protecção integral e efectiva dos direitos dos particulares), foi na Alemanha fruto da Constituição de Bonn de 1949. O período da Constitucionalização do Contencioso Administrativo é o primeiro período da fase da "confirmação" e foi, na Alemanha, uma forma de expiação dos pecados que o Nacional-Socialismo havia trazido para a relação entre Administração e Justiça. A Constituição de 1949 foi uma forma de afirmação da "excepção" alemã que foi pioneira na dignificação da essencialidade da Justiça Administrativa. Os traumas das atrocidades levadas a cabo pela Alemanha nazi levou ao reforço da ideia de que só através de uma tutela forte conferida pelos tribunais (consagrada e plasmada na Lei Fundamental) à necessidade de protecção do indivíduo face ao poder do Estado se poderia realizar a verdadeira Justiça Administrativo e efectivar o Rechtsstaat. A dimensão processual dos direitos fundamentais e a consagração de direitos subjectivos a nível processual passaram a constar do elenco constitucional alemão. Tal como diz M. Fromont "não apenas as jurisdições administrativas foram incorporadas formalmente no poder judiciário, como também - e, sobretudo - o processo perante as jurisdições administrativas foi concebido para permitir aos indivíduos fazer valer os seus direitos subjectivos contra a Administração". A matriz alemã assumiu grande relevo na Europa dos pós Segunda Guerra apesar de, na realidade, caminharmos cada vez mais para o desaparecimento das diferenças entre os diversos Contenciosos Administrativos (assumindo relevo a ideia da necessidade de equilíbrio entre as características subjectivistas e objectivistas dentro de cada ordenamento). A necessidade de operatividade do novo Contencioso alemão reflecte-se nos meios processuais existentes, quer a título principal, cautelar e executivo, de forma a tutelar plenamente os direitos dos particulares. O elenco dos meios processuais, ao invés do que acontecera com o Enumerationsprinzip, está sujeito a um princípio de não tipicidade, uma verdadeira cláusula aberta destinada a proteger e abranger o maior número possível de pretensões dos particulares face a acções ou omissões da Administração (§ 40.º VwGO; este é um corolário do princípio da tutela jurisdicional efectiva consagrada no famigerado art. 19.º, IV da Constituição). Em relação aos meios processuais existem:

--- a título principal:

-- acções de condenação:

- de actos administrativos (Verpflichtungsklage);

- de regulamentos (Normenerlassungsklage);

- de outras formas de actuação da Administração (Allgemeine Leistungsklage);

-- acções de anulação:

- de actos administrativos (Anfechtungsklage);

- de regulamentos (Normenkontrollklage);

-- acções de simples apreciação (Feststellungsklage);

-- acções especiais ou sui generis;

--- a título provisório (providências cautelares; § 123.º VwGO): efeito suspensivo automático dos actos administrativos impugnados (§ 80.º VwGO);

--- a título executivo (remissão para o ZPO; § 167.º VwGO).

O segundo período da fase da "confirmação" do Contencioso Administrativo foi o da Europeização. No que toca à Alemanha, o VwGO foi alvo de algumas alterações, apesar de ter mantido intocado o seu espírito e núcleo essencial. Como a "excepção" alemã conferiu especial ênfase à necessidade de tutela dos direitos dos particulares logo em 1949 (pretendia evitar-se que algo de semelhante ao que havia sucedido no período de Hitler voltasse a acontecer), a Europeização não trouxe muitas novidades. A fase da confirmação na Alemanha, ao contrário de outros países europeus, encontrava-se já bem sedimentada e impunha-se como modelo de excelência e paradigma legislativo aos seus parceiros. Porém, convém não esquecer que, apesar de tudo, Europeização não significa obrigatoriamente "Germanização", havendo desde logo necessidades de convergência. Aconteceu, aliás, uma situação curiosa em matéria cautelar: enquanto a maior parte dos países europeus reforçavam a sua tutela cautelar, a Alemanha caminhou no sentido inverso limitando a regra geral do efeito suspensivo automático da acção de anulação de actos administrativos (reforma do VwGO de 1996/1997). Esta reforma foi sujeita a inúmeras críticas, nomeadamente sendo-lhe apontadas limitações aos direitos dos particulares como a já referida limitação do efeito suspensivo em matérias cautelares, mas também o estabelecimento de prazos mais curtos (2 anos) para impugnação de normas regulamentares (§ 47.º, I, II VwGO). Este retrocesso objectivista em matéria de tutela dos direitos dos particulares resulta do confronto entre a precoce Constitucionalização e as necessidades da Europeização (influenciadas pela nova realidade económica da UE). A subjectivização operada desde o século XIX levou a que se tentasse reverter e conter o seu ímpeto subjectivista através de algumas limitações que já haviam sido notadas pelas pressões (objectivistas) europeias respeitantes à fiscalização da conformidade das decisões administrativas com o Direito Comunitário "sobretudo a propósito do "efeito directo" das directivas não transpostas ou mal transpostas" (Vieira de Andrade). A urgência do Estado Social cujas tarefas, atribuições e concretizações a nível social e infra-estrutural são inúmeras, exige retoques na realidade da Justiça Administrativa sob pena da Administração entrar em colapso. Os interesses da colectividade, o interesse público pode, muitas das vezes, de uma perspectiva objectivista, ser tão ou mais útil à realização da justiça administrativa e à tutela jurisdicional efectiva dos direitos dos particulares, daí a necessidade de compatibilização e equilíbrio entre características subjectivistas e objectivistas no âmago do Contencioso Administrativo. Na verdade, é visível que o Verwaltungsrecht, por toda a experiência que adquiriu ao longo da sua (já longa) história, começou a denotar com o avançar da idade, os normais tiques paternalistas que, porém, acabaram por não ser unanimemente aceites no seio da (nova) realidade europeia, uma comunidade igualitária com ambições comuns de harmonização jurídica, levando à necessidade da Alemanha assumir uma posição (antes impensável) de alguma expectativa, de “refriamento” do ímpeto subjectivista que sempre foi o rosto do seu Contencioso Administrativo.

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