terça-feira, 27 de abril de 2010

Do indeferimento tácito à condenação à prática do acto devido

Até à revisão constitucional de 1997, a impugnação de actos administrativos era a única forma de acesso dos particulares à jurisdição administrativa. Perante a inércia da administração a única forma de acesso aos tribunais administrativos era ficcionar a existência de um acto administrativo impugnável.
A inércia ocorria, quando perante uma petição de um particular, a administração não emitia qualquer decisão expressa.
O indeferimento tácito foi assim criado para que os particulares pudessem exigir da administração uma decisão. Pois o acesso aos tribunais administrativos era apenas permitido perante um acto lesivo da administração. Então, uma vez ultrapassado o prazo legal para a prática dos actos requeridos pelos particulares, estes considerar-se-iam tacitamente indeferidos, para que pudesse haver recurso contencioso do suposto indeferimento.
Apesar de não haver acto impugnável (pressuposto processual da impugnação) a ficção deste garantia a protecção dos particulares no recurso a tribunal.
É paradoxal (e recorrendo às palavras de Vasco Pereira da Silva em “Em busca do acto administrativo perdido”) que um acto considerado “de autoridade e funcionalmente ligado ao exercício do poder do Estado (…dotado de uma imperatividade e coactividade “exorbitante”) (…) agora apareça como um instrumento privilegiado de protecção do cidadão”.
Temos que admitir que é um pouco rebuscado e, objectivamente, de difícil concretização, o facto de perante o silêncio da administração, termos que “imaginar” um acto que não existe, que é uma ficção, para podermos impugná-lo. Aliás tal ideia é ironicamente retratada na afirmação de Vasco Pereira da Silva “como o poeta, também o jurista é um “fingidor”, finge que existe um acto administrativo de indeferimento, para permitir que o particular finja que o impugna e para que depois, o tribunal possa fingir que o anula”. Neste, mundo de “faz-de-conta” do indeferimento tácito, a tutela dos particulares sai prejudicada.
Achava-se que o juiz podia apenas anular os actos, não podia nunca condenar a administração à prática do acto devido, porque ao estar a dar ordens à administração estaria a administrar e isso poria em causa o Principio da separação de poderes. A função jurisdicional estaria, assim, a invadir a função administrativa.

Isto hoje, com a passagem de um contencioso de anulação para um contencioso de plena jurisdição, não faz muito sentido, porque quando o juiz condena a administração à prática de um acto, cuja prática é imposta por lei e que corresponde a um direito de um particular lesado, está a julgar e não a administrar; o juiz não está a praticar um acto pela a administração.
Nas palavras do Vasco Pereira da Silva, isto, não só não viola o principio da separação de poderes como “é mesmo a forma mais adequada (…) para reagir contra comportamentos administrativos que, por acção ou omissão, lesam direitos dos particulares decorrentes da negação de actos legalmente devidos”.
Foi apenas na Revisão Constitucional de 1997, com forte influência Alemã, através da alteração do artigo 268º/4, que a par da impugnação de quaisquer actos passa-se também a prever “…a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos”. Consagrou-se assim uma tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares.
No CPTA foi no art.66º que se começou a prever que “a acção administrativa especial pode utilizada para obter a condenação da entidade competente à prática, dentro de determinado prazo, de um acto administrativo ilegalmente omitido ou recusado”. Este acto tem que ser legalmente obrigatório, contudo não se deve entender como abrangendo apenas as omissões contrárias à lei, mas sim todas as omissões que sejam contrárias à ordem jurídica (incluindo princípios e imposições internacionais por exemplo).
Surpreendentemente, em 2004, contrariando a maioria da doutrina, o STJ veio “ressuscitar” o acto de indeferimento tácito, alegando que, desde que se mostre necessário à eficácia e prontidão das decisões, devíamos considerar que ao lado do regime geral, vigorassem regimes especiais de indeferimento tácito.
Ora, isso (na opinião de André Pais Proença, no seu relatório de mestrado) só geraria confusão, incerteza e insegurança jurídica, principalmente em relação a prazos, porque a acção de condenação à prática do acto devido pode ser interposta até um ano após a omissão, enquanto que para o indeferimento tácito, o prazo é só de três meses. Os particulares ficariam assim na dúvida em relação ao prazo a cumprir.

Perante a condenação à prática do acto devido, surge a dúvida se ela também abrange os casos de acto tácito de deferimento, previsto no artigo 108º CPA. O diferimento tácito corresponde às situações em que é necessária uma aprovação ou autorização da administração para a prática de um acto administrativo ou exercício de um direito e perante a omissão da administração, passado o prazo estabelecido por lei, essa autorização considera-se concedida.
Com o artigo 67ºCPTA (que prevê a condenação à prática do acto devido) a maioria da doutrina considera que o indeferimento tácito (Art. 109º CPA) foi revogado. Contudo, entende que abrange apenas o silêncio negativo e não o silêncio positivo, que é o caso do diferimento tácito previsto no art. 108º CPA.
Por outro lado, Colaço Antunes, entende que ao não se fazer nenhuma distinção expressa entre o silêncio negativo e o positivo no art. 67º/1 a) CPTA, deve-se incluir no seu âmbito tanto um como o outro, e considerar abrangido não só o indeferimento como o diferimento tácito.
Mário Aroso de Almeida, vem defender, a posição, que na minha perspectiva, parece fazer mais sentido, que é a seguinte: o que o art. 108º CPA prevê, é uma presunção legal, ou seja, depois da decorrência do prazo legal, se não for praticado qualquer acto pela administração, presume-se que a decisão foi tomada. Ou seja, não se trata de um ficção, mas sim de uma presunção jurídica. Assim, não fará sentido a intervenção judicial para a condenação à prática do acto devido, se a produção do acto omitido já resulta da própria lei.
Como já vimos anteriormente, a ficção legal existia pelo facto do acesso judicial estar circunscrito apenas à impugnação de actos, então perante a omissão da administração tínhamos que o ficcionar para que houvesse um acto susceptível de impugnação. Perante o diferimento tácito, não há assim, essa necessidade, porque a prática do acto já resulta da lei.
O diferimento tácito confere só por si uma forte tutela das situações particulares, porque pretende-se evitar os prejuízos que resultariam da excessiva demora na resolução do caso, “é um mecanismo de “agilização administrativa”, forçando a administração a dar resposta expressa” (Nas palavras de Carlos Cadilha).
Contudo há um forte argumento contra: a oposição dos particulares está assegurada de qualquer modo, seja pelo art.67º CPTA, seja pelo 112º CPTA que prevê a possibilidade de um processo cautelar, que permite obter licença ou aprovação provisoriamente até que o processo principal se resolva. O que faria do diferimento tácito uma figura totalmente desnecessária.
Apesar deste argumento, por questões de celeridade e eficiência, o diferimento tácito satisfaz melhor os interesses dos particulares, porque evita uma desnecessária intervenção judicial.
É esta também a posição que se retira da interpretação sugerida por Vieira de Andrade do artigo 67º/1 a) CPTA, que considera só poder haver condenação à prática do acto devido perante a omissão do acto requerido no prazo legalmente estabelecido para a decisão e desde que a lei não preveja outras consequências. Ora no artigo 108º CPA, a lei prevê outra consequência: prevê o diferimento tácito.

Como podemos verificar no artigo 67º CPTA, a omissão do acto não é a única situação que possibilita a acção de condenação à prática do acto devido. O indeferimento expresso, total e directo do acto devido e a recusa de apreciação de requerimento dirigido à prática do acto são também fundamentos da acção de condenação à prática do acto devido, apesar de Vasco Pereira da Silva considerar que a existência ou não de um acto ser totalmente irrelevante, pois o que está em causa na acção de condenação é o próprio direito da relação jurídica substantiva. O que o tribunal vai apreciar é a relação administrativa existente entre o particular e a administração e não propriamente e o acto; é um juízo sobre a relação administrativa.


Bibliografia

-SILVA, Vasco Pereira – “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise” – 2ª Edição Almedina 2009
-SILVA, Vasco Pereira – “Em busca do Acto Administrativo Perdido” – Almedina Coimbra 1996
-PROENÇA, André Rosa Lã Pais – “As duas faces da condenação à prática do acto devido” – Relatório de Mestrado no Seminário de Contencioso Administrativo 2005
-VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos – “A Justiça Administrativa (Lições)” – 6ª edição Almedina 2004
-SERVULO CORREIA, José Manuel – “Impugnação de Actos Administrativos” in Cadernos de Justiça Administrativa 1999
-GONÇALVES, Pedro – “Relações entre as impugnações administrativas necessárias e o recurso contencioso de anulação de actos administrativos” – Almedina Coimbra 1996

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