quinta-feira, 22 de abril de 2010

ÂMBITO DE JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA

Ac. STA de 14/05/2009

“1. A… intentou acção de condenação, sob a forma ordinária, contra Administração dos Portos do Triângulo e Grupo Ocidental, SA (Açores), designada pelas iniciais A.P.T.O. (…)
2. Citada, a Ré veio contestar, arguindo a excepção de incompetência dos tribunais comuns em razão da matéria e sustentando a competência dos tribunais administrativos, (…)
3. O A. veio replicar, reafirmando que o tribunal comum é o competente, porquanto a Ré é uma pessoa colectiva de direito privado (…)
4. Foi proferido despacho saneador, absolvendo a Ré da instância com fundamento em o tribunal ser incompetente em razão da matéria, sendo competentes os tribunais administrativos.
5. Inconformado com essa decisão, o A. interpôs recurso de agravo para a Relação de Lisboa, tendo esta julgado o recurso improcedente e confirmando o decidido pela a 1ª instância.
6.Ainda inconformado, o A. agravou dessa decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo concluído:
1. A Ré é uma pessoa colectiva de direito privado.
2. Apesar de se tratar de uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos.
3. Independentemente dos actos praticados pela Ré serem no âmbito do exercício de gestão pública ou privada são competentes para apreciar a responsabilidade extracontratual da mesma os tribunais comuns.
(…)
5. (…) não é pela natureza dessas funções que se pode concluir (…) que o tribunal competente é o administrativo.
6. Tal só seria determinante se a Ré fosse uma pessoa colectiva de direito público.
7. Sendo que, hoje, não se coloca tal questão, face à redacção do art. 4.º, n.° 1, alíneas g) e h) do ETAF.
8. Pois deixou-se de fazer a distinção entre o que até então era feita pela doutrina e jurisprudência, no sentido de apurar nas situações de responsabilidade civil extracontratual da Administração, se esta agiu no âmbito de um exercício de gestão pública ou de gestão privada.

(…)
10. Em consequência, o recurso deverá ser julgado procedente e o acórdão recorrido revogado, declarando-se o tribunal “a quo” competente.
8. Recebidos os autos no Supremo Tribunal de Justiça, o relator despachou no sentido de ser o Tribunal de Conflitos o competente para decidir a questão da competência, nos termos do art. 107.°, n.° 2 do CPC.
(…)
II. FUNDAMENTAÇÃO
(…) no que toca aos tribunais judiciais, a sua competência é residual.
No que se refere aos tribunais administrativos, dispõe a Constituição da República Portuguesa (CRP), no seu art. 212.°, n.° 3 que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de relações administrativas e fiscais».
Segundo GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, p. 815), a qualificação como “relações jurídicas administrativas ou fiscais” «transporta duas dimensões caracterizadoras: as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público; (…). Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal
(…)
Seguindo a definição de VIEIRA DE ANDRADE (A Justiça Administrativa, Lições, 2000, p. 79) a relação jurídica administrativa é «aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido».
A actual definição legal, na esteira da lei fundamental, deixou de estribar a delimitação da jurisdição administrativa na distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada, deslocando o pólo aglutinador para o conceito de relação jurídica administrativa e de função administrativa, em que avulta a realização de um interesse público levado a cabo através do exercício de um poder público e, portanto, de autoridade, seja por uma entidade pública, seja por uma entidade privada, em que esta actua no uso de prerrogativas próprias daquele poder ou no âmbito de uma actividade regulada por normas do direito administrativo ou fiscal.
(…)
14. Revertendo ao caso dos autos, temos que, de um lado, na posição passiva, está a Administração dos Portos do Triângulo e do Grupo Ocidental, SA, que é, como vimos, uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, dotada de um estatuto de direito privado e regendo-se pelas normas desse mesmo direito privado, salvo no que diz respeito a actividades conexionadas com o exercício de poderes de autoridade; do lado activo, figurando como autor, está um sujeito privado, uma pessoa singular, (…) Trata-se, pois, de um caso que se enquadra no âmbito da chamada responsabilidade civil extracontratual.
Nos termos do art. 4.° do ETAF, como vimos, compete aos tribunais de jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto a «responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos» (alínea h); a «responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público» (alínea i).
(…) tal acto não se rege por normas de direito público. A matéria em causa é toda ela regida pelas normas do direito privado, quer pela sua natureza, quer ainda pela qualidade dos sujeitos envolvidos, ambos de natureza privada e actuando fora de qualquer prerrogativa de autoridade pública (…).
Assim se concluiu no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), de 17/05/2007, Proc. n.° 05/07, que, por sua vez, citou um outro acórdão — o proferido no Proc. n.° 681/04: «Por sua vez, o novo ETAF [o da Lei n.° 13/2002], ao definir o âmbito de jurisdição administrativa, só admite que nesta se aprecie a «responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados» se, relativamente a estes, houver dispositivo que pontualmente lhes estenda «o regime específico da responsabilidade do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público». E isto significa que, na ausência de um dispositivo desse género, e ressalvada a ocorrência de quaisquer outras razões extravagantes (...) a jurisdição administrativa continua hoje, por regra, a não conhecer da responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito privado, ainda que elas sejam de capitais exclusivamente públicos e estejam incumbidas do desempenho de actividades de interesse público.»
Consequentemente, a jurisdição competente para dirimir o litígio em causa nos autos é a dos tribunais judiciais(…)”


De referir apenas, em jeito de conclusão, que o art. 4º do ETAF trata, conjuntamente com o art. 212/3 CRP, do âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos, estendendo-o também a questões não administrativas.
No nº1 do art. 4º do ETAF encontramos uma delimitação positiva do mesmo e nos nº 2 e 3 uma delimitação negativa, enquanto concretização do critério constitucional.
No acórdão supra transcrito são analisadas alíneas do art. em que a competência dos tribunais administrativos é aferida em razão de um critério estatutário.

Acerca também do acórdão transcrito, nomeadamente quanto à alteração do ETAF a respeito da "dicotomia" entre direito administrativo e civil (invocado pelo A. no recurso para o STA, nos diversos argumentos presentes no pt 6, que destaquei em cor azul), é consensual que esta desapareceu com a última reforma do Estatuto: há, assim, uma extensão da responsabilidade em função do sujeito apenas (não atendendo ao critério material).
O Professor Vasco Pereira da Silva, a respeito da alínea g) do art. 4º ETAF, tem um entendimento o menos restritivo possível: entende que quando o autor da acção é a Administração só isso basta, não importando se a natureza do acto é de natureza pública ou privada (cfr. art. 2º/5 CPA). Entende-se então que, se adoptarmos um entendimento mais restritivo, voltaremos à "dicotomia" que o legislador pretendeu evitar.

Alexandra Martins Onofre, nº 16440, Subturma 1

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