domingo, 18 de abril de 2010

Tarefa 1 - Os sistemas de justiça administrativa: o sistema francês e o sistema britânico.

Existem fundamentalmente dois tipos de sistemas e justiça administrativa. O sistema britânico ou de administração judiciária e o sistema francês ou de administração executiva.
Principiando por este último, o sistema de administração executiva caracteriza-se fundamentalmente pela sujeição da Administração a tribunais próprios. A Revolução francesa de 1789 marcou aquilo que o Prof. Vasco Pereira da Silva chamou de “pecado original” e que consiste na “promiscuidade entre as tarefas de administrar e de julgar”. O facto é que após a Revolução os tribunais continuavam a ser constituídos por membros da antiga nobreza tornando-se um meio de resistência ao novo regime. O poder executivo veio então, por via da Lei 16-24 de Agosto, proibir qualquer interferência do poder judicial na administração, impedindo “o juiz” de apreciar os actos daquela, bem como de chamar à sua presença qualquer funcionário da administração para se pronunciar sobre os seu actos. Foram então criados os tribunais administrativos (o primeiro terá sido o “Conseil d`État”), incumbidos de julgar a Administração, mas que não eram verdadeiros tribunais, tratando-se de órgãos meramente consultivos que faziam parte de administração e que julgavam com independência outros órgãos desta. A justificação para isto? Segundo o Prof. Freitas do Amaral reside numa “interpretação peculiar do principio da separação dos poderes” e que hoje é conhecida como a “concepção rígida da separação de poderes”: se o poder executivo não podia inteferir no poder judicial, também o poder judicial, em caso algum, poderia interferir “no funcionamento da Administração Pública”. Nas palavras no Prof. Vasco Pereira da Silva “em vez de se reconhecer que julgar a Administração é ainda julgar, prefere-se considerar que julgar a Administração é ainda administrar”. A contradição salta à vista. Esta interpretação, ao invés de garantir a autonomia dos poderes veio, muito pelo contrário, unir na Administração o poder de administrar e de julgar.
A reversão desta situação de “promiscuidade” só veio a ser atenuada com “o milagre da jurisdicionalização” - o que o Prof. Vasco Pereira da Silva denomina de “baptismo” - que consiste na progressiva transformação dos tribunais administrativos, ou antes, dos órgãos administrativos de controlo da administração, em verdadeiros tribunais e que vem a ocorrer desde os finais do século XIX e durante o século XX. Simultaneamente o Direito Administrativo deixa, progressivamente, de ser o direito que “protege” a administração, que a previligia nas relações com terceiros. Como escreve Freitas do Amaral o Direito Administrativo “ao nascer” fê-lo com base na ideia de que a administração, os seus órgãos e agentes, encontravam-se em posições diferentes das dos particulares uma vez que prosseguem o interesse público, devendo pois dispor de poderes de autoridade necessários à realização desse interesse geral. Este estaria acima dos diversos interesses particulares. O Direito Administrativo passa a ser o “direito regulador das relações jurídicas administrativas”.
Uma terceira fase seguiu-se a estas duas (a partir da década de setenta do Século XX): a do “crisma ou confirmação” (para continuar a usar a terminologia do Prof. Vasco Pereira da Silva). É a afirmação jurisicional e subjectiva do Contencioso Administrativo. Ocorre primeiro numa base constitucional através da consagração em Lei Fundamental de verdadeiros modelos de Contencioso Administrativo, a equiparação dos tribunais administrativos aos tribunais comuns, com idêntica natureza, e a afirmação da independência das jurisdições administrativas, tal como são independentes as jurisdições comuns. Em segundo lugar assiste-se ao surgimento de uma dimensão europeia do Direito Administrativo. Necessária pelo facto de a própria União Europeia ser uma maquina administrativa (surge um Direito Administrativo de nível europeu). Necessária pela diversidade de sistemas administrativos que “populam” a Europa que impõe um movimento de convergência dos mesmos.
O outro sistema administrativo é o britânico ou de administração judiciária. A primeira nota que se deve fazer em relação ao sistema britânico é que o seu “nascimento” ocorre apenas quando o sistema francês já se encontrava na segunda fase, a do baptismo. Os conceitos de “rule of law”, “judicial supremacy” (poder genérico de revisão de qualquer acto administrativo atribuído aos tribunais) e “due process of law” (não existe nos países anglo-saxónicos o conceito de interesse legitimo da Administração, esta não tem legitimidade para agir sozinha pelo que qualquer decisão de um seu órgão que afecte terceiros só será imperativa depois da intervenção de um tribunal comum, excepto, é claro, se esta actuasse no uso dos “summary powers” em que pode executar “motu próprio” os seus actos) deram aos tribunais anglo-americanos o poder de controlar os órgãos da administração pública, nada diverso daquele que exercem sobre os actos privados. O resultado disto foi que o direito enunciado nas sentenças relativas à administração não difere daquele das sentenças ditadas a respeito de actos privados, ou seja, gera-se um “atraso” no desenvolvimento de um Contencioso Administrativo propriamente dito.
O modelo administrativo britânico tem assim como traço principal a sujeição da Administração aos tribunais comuns (“courts of law”). O facto é que as revoluções britânicas de 1600 e a norte-americana de 1700 tiveram como motivo os excessos do poder executivo de modo que a tendência foi sempre para reforçar os poderes legislativo e judicial. Escreve Marshall J. Breger (Prof. da Faculdade de Direito da Universidade Católica dos E.U.A.) o Direito Administrativo norte-americano tem como objecto as relações dos particulares com a burocracia. Todas elas com uma característica fundamental: “os americanos desconfiam da burocracia. “Uma herança da “common law” anglo-americana que se desenvolveu, em parte, da desconfiança do poder executivo. A consequência disto levou Dicey a afirmar que em Inglaterra “não existe Direito Administrativo”. Existe, sem dúvida, administração, mas esta é regulada pelo direito privado ou comum. Tal como escreve o Prof. Freitas do Amaral toda a Administração está submetida “ao direito comum, o que significa que por via desta regra não dispõem de privilégios ou prerrogativas de autoridade pública”. A ter algum poder deste género estes ser-lhe-á atribuído por lei especial sendo encarado como excepção ao principio geral do “rule of law”. Neste sistema, a Administração, é vista como um sujeito igual ao sujeito privado e, como tal, com iguais direitos, poderes e capacidade jurídica.
Trata-se pois de uma interpretação “mais virtuosa” (sem a promiscuidade que ocorreu no sistema francês) do princípio da separação de poderes, mas que não deixou de levantar problemas. O primeiro surge logo no “self-restraint” do juiz, que escolhe auto-limitar-se na apreciação de questões administrativas, sobretudo quando estava em causa o uso de poderes discricionários. Nos Estados Unidos da América, ao longo do século XIX, a ideia predominante era que os únicos actos do poder executivo que eram sujeitos a “fiscalização” judicial eram aqueles que não implicavam o uso de tais poderes. O juiz apenas agia nas situações em que a entidade administrativa claramente actuava fora dos poderes que lhe eram conferidos pela lei. E até então os tribunais consideravam que não possuíam qualquer poder para se pronunciarem sobre os procedimentos e actuação dos vários órgãos administrativos do governo. A “judicial supremacy” à pouco referida só surgiu no Acórdão “American School Of Magnetic Healing vs. McAnnulty” de 1902 que afirmou a “presunção de que toda actuação administrativa é passível de controlo judicial”. No Reino Unido criou-se a “aberração” dos “admistrative tribunals” que não eram mais do que órgãos administrativos especiais com competência administrativa, mas também de jurisdicionais de controlo da actividade administrativa. Corrompeu-se assim a interpretação virtuosa do princípio da separação dos poderes. No entanto o grau de promiscuidade não atinge a gravidade daquele do sistema francês, na medida em que, e citando o Prof. Vasco Pereira da Silva, “mesmo quando se estabelece o controlo da actividade administrativa por um órgão especial (…) a última palavra deve caber sempre a um tribunal (“court”) e não a um órgão administrativo especial (“tribunal”), encontrando-se sempre garantido o recurso para os tribunais superiores (“superior courts”) da decisão de um (“tribunal”) relativamente a questões de legalidade”. De citar o “Supreme Court Act” de 1981, desde o qual a jurisprudência britânica concede amplamente a “judicial review” quando a situação envolva questões de “Public Law”.
Também o sistema britânico passou pela fase do “crisma ou confirmação”. Hoje em dia o Direito Administrativo tem claramente, em terras de Sua Magestade, dignidade constitucional. É curiosa a referência do regente, no seu manual, ao episódio do panfleto de 1987 que circulou pelos órgãos administrativos a informar os seus membros da “dimensão constitucional adquirida pelo controlo judicial da actividade administrativa”. A par disto assistiu-se também a uma especialização do Contencioso Administrativo através da criação em 1977 no “High Court” de um tribunal especializado para conhecer de questões de Direito Administrativo (a “Queen`s Bench Division”) acompanhado da criação de uma forma de processo especial. Em 1992 o “Tribunals and Inqueries Act” declarou fazendo parte da constituição material o principio segundo o qual as decisões dos “tribunals” dão sempre lugar a possibilidade de impugnação perante um “court”. Como consequência hoje em dia considera-se que qualquer medida que vise negar essa possibilidade é, nas palavras do regente, “discutível por razões constitucionais” e atenta contra o direito de acesso à justiça presente no art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Em conclusão, os dois sistemas apresentam mais pontos de contacto do que à primeira vista se poderia supor e a tendência, devido ao fenómeno de "europeização", será para cada vez mais as diferenças ainda existentes se esbaterem.

Bibliografia:
“A Justiça Administrativa” - José Carlos Vieira de Andrade
“Curso de Direito Administrativo Vol. I” - Diogo Freitas do Amaral
“Direito Comparado Perspectivas Luso-Americanas Vol. I” – Dário Moura Vicente (coordenador)
“O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise” - Vasco Pereira da Silva
“O Direito Administrativo no Sistema do Common Law” - Geraldo Ataliba

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