terça-feira, 25 de maio de 2010

Breves notas sobre o âmbito de jurisdição administrativa

Estas breves notas pretendem apenas um exame global do artigo 4 ETAF, de como percebê-lo, para depois uma análise casuística de algumas das suas alíneas. Não iremos por isso perspectivá-lo de acordo com o artigo 212/3 CRP, senão por pequenos apontamentos, matéria que daria para um outro e bem extenso comentário.

Em primeiro lugar: Qual a técnica de redacção do artigo?

O artigo 4, no seu número 1, delimita positivamente o âmbito da sua jurisdição com uma larga enumeração de casos que especifica ser da competência dos tribunais administrativos. Esta enumeração terá de ser entendida como exemplificativa e não como taxativa. Só assim se respeita o art. 212/3 CRP que atribui jurisdição aos tribunais administrativos para acções que tenham por objecto dirimir litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, pois , como é natural, não arriscou o legislador tentar imaginar todas as hipóteses deste tipo de litígios. Assim, mesmo numa interpretação literal, esquecendo o imperativo constitucional, chegamos à conclusão de um número 1 que enumera exemplificativamente casos da competência da ordem administrativa (“compete aos tribunais (…) nomeadamente”). Seguindo o raciocínio, o artigo4 não constitui os litígios que pertencem à jurisdição administrativa, mas sim declara alguns deles. Deste modo, mesmo que não houvesse a enumeração do número 1 teríamos sempre de concluir que todos esses casos já seriam, por imperativo constitucional, da jurisdição administrativa, pretendendo apenas o legislador conferir maior segurança na distinção da jurisdição entre esta e a dos tribunais comuns.

Como já referi no meu comentário ao Acórdão do Tribunal dos Conflitos, a verdade é que o artigo 212/3 CRP possui muitas excepções, porventura inconstitucionais, como por exemplo a competência dos tribunais criminais para processos de contra-ordenação, a competência dos tribunais civis para decidir sobre indemnizações derivadas de expropriação ou sobre as decisões de conservadores e notários. Inclino-me para um juízo de inconstitucionalidade, mas não cabe neste comentário esta análise. Fica a nota de que a divisão de competências entre tribunais comuns e administrativos está longe de ser indiscutível.

Se o número 1 delimita positivamente a jurisdição administrativa, já os números 2 e 3 operam uma delimitação negativa que completa o sentido do número 1.

Quanto à análise do número 1, encontramos na sua alínea a): “a tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses (…) directamente fundados em normas de direito administrativo ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo”. Para a tutela dos direitos fundamentais, se é certo que normalmente contrapõem Administração e particular, não menos certo é que podem criar litígios apenas entre particulares. Nesta matéria, da eficácia dos direitos fundamentais em relação a privados, diz-nos o art.18/1 CRP que vinculam entidades privadas, muito embora a expressão “entidades” seja de difícil interpretação e a referência apenas aos direitos de liberdade (e já não aos direitos sociais) também cause discussão. Porém, quer pela teoria da aplicabilidade directa, quer pela teoria dos deveres de protecção ou mesmo pela teoria da vinculação mediata, entende-se que podem surgir litígios apenas entre particulares (veja-se que nos EUA a tese que vigora é a da irrelevância absoluta dos direitos fundamentais nas relações privadas). Para estes casos devemos entender que não é competente a jurisdição administrativa mas sim a jurisdição comum, não se podendo interpretar de forma literal a alínea a). Assim devemos ler: tutela de direitos fundamentais nos litígios emergentes de relações jurídicas .
Quanto à tutela dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares já distingue a lei, obviamente, quando directamente resultantes de direito administrativo ou decorrentes de acto jurídico praticado ao abrigo de disposições de direito administrativo, unindo/harmonizando jurisdição competente e quadro jurídico aplicável.

Para a alínea b), c), d), e) e f) não existe grande discussão a ser feita, excepto no que respeita à aliena e) que aponta para um critério que afasta a natureza pública ou privada das pessoas ou do contrato como determinante da competência e atende apenas à lei (pública) que regula o procedimento pré-contratual, voltando-se a unir jurisdição e direito a aplicar. Veja-se ainda que a razão de ser da alínea e) prende-se com o facto de a validade do contrato quase sempre estar relacionada, nestes casos, com questões relativas à fase pré-contratual, embora já me pareça discutível a abrangência da lei mesmo para questões apenas de execução do contrato (que como vimos pode ser privado e apenas submetido a regras de direito público quanto à fase pré-contratual).

As alíneas g), h) e i) foram analisadas longamente no comentário ao Acórdão do Tribunal dos Conflitos, pelo que aqui darei umas brevíssimas notas. Em primeiro lugar, existe um entendimento de que apenas haveria competência dos tribunais administrativos para as acções em que a pessoa colectiva pública fosse réu e já não quando fosse autor, numa interpretação literal da alínea g) que o Professor Vasco Pereira da Silva afasta liminarmente considerando carecer de sentido tal distinção entre casos. Em segundo lugar, que o critério para a atribuição de jurisdição com base na alínea é de cariz formal/estatutário, acabando-se de vez com a distinção entre responsabilidade derivada de actos de gestão pública ou privada.

Quanto à alínea h) tenho de acrescentar que esta não poderá ser lida independentemente da alíena g), não fazendo sentido que seja a jurisdição administrativa competente para todos os casos de responsabilidade extracontratual de titulares de órgãos (…). Deve-se então acrescentar no final da alínea h) “sempre que a jurisdição administrativa for competente nos termos da alínea g)”. Já a alínea i), por sua vez, consagra um critério material pois que o regime da responsabilidade do Estado (a Lei 67/07) distingue entre tipos de actividade, administrativa e outras. Ainda para esta alínea acrescenta o Professor Vieira de Andrade que apenas se aplicará para a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados (…) quando no exercício de poderes administrativos, embora não me pareça que seja esta a intenção do legislador para a aplicação da alínea i).

Quanto às alíneas j), l), m) e n) não tenho que dizer, excepto notar, como já o fiz anteriormente, que a alínea l) retira da jurisdição dos tribunais administrativos a competência quanto aos casos de prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos quando constituam ilícito contra-ordenacional, ficando na dúvida se esta exclusão, que se dá para todos os litígios de contra-ordenações e não apenas para os referidos na alínea, será ou não inconstitucional.

Para terminar, refira-se que o número 3, aliena d), pode levantar confusões devido à sua má técnica legislativa: esta alínea constitui uma excepção da excepção que ela própria impõe, sendo que a excepção da excepção é a regra e por isso deveria constar no número 1, ficando apenas no número 3 a excepção à regra.

Paulo Alexandre Lopes
Número 16813

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