sábado, 22 de maio de 2010

Processo administrativo como processo a um acto ou como processo de partes: vantagens e inconvenientes dos dois modelos

Existem dois modelos de justiça administrativa nos sistemas de administração executiva, um modelo objectivista e um subjectivista. O confronto entre eles baseia-se em diversos critérios, entre eles: a função do contencioso (procura principalmente a defesa da legalidade ou a tutela de direitos dos particulares?) e o objecto do processo (é um processo feito a actos ou julga-se a lesão das posições jurídicas subjectivas do administrado?).
O modelo que preponderou no continente europeu foi o chamado “modelo francês”, caracterizado, entre outras aspectos, por um regime processual fundamentalmente objectivista, que considerava o recurso de anulação como “um processo feito a um acto”, projectado para fiscalizar a legalidade do exercício autoritário de poderes administrativos, em que os particulares têm a função de auxiliar a legalidade, desde que interessados no resultado. O domínio central do contencioso administrativo comum é composto pelo recurso de anulação de decisões administrativas, que tende a ser de mera legalidade, sucessivo (pressupõe decisão administrativa anterior) e limitado (porque o juiz só pode anular o acto, não tem poderes de decisão plenos, e porque há dificuldades em obter a execução das sentenças contra a administração).
O chamado “modelo alemão”, instaurado depois da II Guerra Mundial na Alemanha, traz a ideia de uma protecção judicial plena e efectiva dos administrados, reflectindo um modelo fundamentalmente subjectivista. Propugna, entre outras coisas, o desenvolvimento de meios de acção de jurisdição plena quando esteja em causa a lesão de direitos dos cidadãos, independentemente da prática de actos administrativos, deixando de se colocar o recurso contencioso de anulação como o núcleo essencial do sistema. Procura também a acentuação dos aspectos subjectivistas no processo administrativo, enquanto processo de partes, ao nível da legitimidade, uso dos meios cautelares, efeitos da sentença, poderes e deveres das partes, limites do caso julgado, execução das decisões judiciais.
Tentando fazer um balanço de vantagens e desvantagens dos modelos, podemos afirmar que a evolução dos sistemas aponta para uma subjectivização da justiça administrativa devido à provada insuficiência dos modelos objectivistas clássicos para garantir uma protecção judicial efectiva dos direitos dos particulares, cuja relevância cresceu intensamente com o alargamento da intervenção administrativa nas esferas da vida social. Mas não se deve esquecer que ambos os modelos possuem vantagens e inconvenientes pois, se ninguém nega que o modelo subjectivista protege mais fortemente os administrados titulares de direitos perante a Administração, deve admitir-se que o modelo objectivista fornece garantias mais amplas de defesa da legalidade, principalmente em extensão, pois tende a alargar a legitimidade de acesso aos tribunais, quer contra actos individuais, quer contra normas, seja na acção particular, seja na acção colectiva, pública e popular. Um dos pontos fracos do modelo subjectivista verificado na Alemanha é a inexistência da figura da acção popular como figura geral, admitida agora como acção de grupo em determinadas áreas, e o reconhecimento fortemente limitado da acção pública, apenas para a impugnação directa de normas.
Mesmo no âmbito dos direitos dos particulares, o modelo objectivista possui algumas vantagens, uma vez que o reconhecimento da Administração como poder implica também a existência de especiais deveres e limitações que funcionam em favor dos administrados, como o ónus da prova, por exemplo. Mas, por outro lado, esta concepção faz do acto administrativo o ponto central, o contencioso preocupa-se quase exclusivamente com a anulação do acto, concebendo o recurso de anulação como um “processo feito a um acto” (HARIOU), que não pressupõe de nenhuma forma a existência de direitos subjectivos do particular. A dogmática do Estado de Direito, ao encarar a lei como o principal instrumento de garantia dos direitos dos cidadãos, desvaloriza os direitos subjectivos. Estamos perante um contencioso objectivo em que tudo gira em volta do acto administrativo; este é, nas palavras de Vasco Pereira da Silva, “pressuposto, objecto, parte única, meio de prova, medida da sentença…”. Ora, o acto administrativo, numa primeira fase, gozava de total isenção de controlo jurisdicional. No Estado liberal, é visto como privilégio da Administração, como acto unilateral cujos efeitos são susceptíveis de imposição coactiva aos administrados, como expressão de um poder público desenvolvido no sentido da actuação agressiva.
Uma das orientações da doutrina que defendia o não reconhecimento de direitos subjectivos dos particulares nas relações administrativas fundamentava a sua posição afirmando que o recurso de anulação era visto como um processo feito a um acto, em que o particular não defendia posições jurídicas próprias. Esta concepção implica que o particular não defende nenhum direito no processo, nem age como parte em sentido material, sendo apenas um mero auxiliar da Administração, colaborando na procura da decisão administrativa mais conforme à lei e tendo apenas um interesse material na anulação do acto ilegal. O particular desempenha o papel de um Ministério Público, nas palavras de Hauriou, pois o interesse que tem coincide com o interesse da boa administração. Para Guicciardi, o cidadão recorre para tutela do interesse público e aproveita da ocasional coincidência, com este último, do seu interesse pessoal, agindo assim como súbdito ao serviço de uma Administração toda-poderosa.
A passagem do Estado liberal para o Estado social significou o fim da época áurea do conceito clássico de acto administrativo, forçado agora a enfrentar realidades diversas daquelas para as quais tinha sido criado. O acto administrativo não desapareceu, mas o Estado social impôs uma mudança de paradigma da Ciência do Direito Administrativo, pelo que o acto administrativo perdeu a sua posição de monopólio nas relações administrativas, tornando-se uma forma de actuação entre muitas. A passagem para uma Administração prestadora traz consigo a multiplicação das formas de actuação administrativa, correspondentes às novas funções que a Administração é chamada a desempenhar. As relações entre a Administração e o particular complexificam-se, intensificam-se, tornando-se, em muitos casos, duradouras.
Neste âmbito, surgem críticas à noção de acto administrativo que, devido ao seu carácter estático, seria incapaz de explicar a dinâmica das novas formas de actuação da Administração. Alguns autores propõem mesmo a substituição do conceito de acto administrativo como conceito central pelo de relação jurídica, como forma de ultrapassar o dualismo Administração agressiva vs. Administração prestadora. Outra orientação propõe como novo conceito central para o Direito Administrativo o procedimento. A concepção do acto administrativo como centro de gravidade tornou-se inadequada, pois ele é apenas um momento do complexo relacionamento entre Administração e particular, cuja existência é anterior e posterior àquele, e que não se esgota nessa actuação pontual. Ele fundamenta, cria ou põe termo a uma relação jurídica mas há muitas outras que se fundamentam, modificam ou terminam de uma forma distinta do acto administrativo.
A mudança de natureza da actividade administrativa influenciou o próprio modo de conceber o acto administrativo. Desvaloriza-se o elemento autoritário e passa-se a valorizar a ideia de uma actividade administrativa dirigida à satisfação de necessidades colectivas, democratizando esta manifestação de poder através da processualização da actividade administrativa e da participação legitimadora do cidadão no processo de tomada de decisão.
A importância do instituto da relação jurídica, nomeadamente quando se estabelecem relacionamentos duradouros entre o particular e as entidades administrativas, não impossibilita que o acto administrativo continue a destacar-se como relevante manifestação do poder da Administração e, provavelmente, a mais lesiva dos direitos dos particulares. Estas duas figuras não se excluem reciprocamente, complementam-se.
Actualmente, a opção por um modelo processual de justiça administrativa faz-se no contexto da evolução já verificada, pois ninguém defende, presentemente, que o processo seja a continuação do procedimento administrativo que gerou o acto, ou que o particular detenha uma mera posição de facto subordinada. Todos reconhecem que o processo administrativo é, essencialmente, um processo jurisdicional e, assim, um litígio entre partes. Todavia, não devemos considerar o objectivismo como pertencente ao passado e o subjectivismo como representante do futuro, pois a actual complexidade de interesses públicos e privados aponta para uma nova legalidade social que impõe uma reacção efectiva contra normas lesivas do interesse público e mecanismos institucionais e colectivos para a sua realização. Neste sentido, concordamos com Vieira de Andrade quando afirma que a opção mais adequada para o legislador talvez seja “uma construção normativa que combine, sem preconceitos, aspectos de ambos os modelos, aproveitando, na medida do possível, as vantagens de cada um” (Cfr. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, 9ª edição, Almedina, pág. 23.). Porém, deve partir-se essencialmente da concepção subjectivista, considerando “o acto administrativo não como objecto do processo, mas como uma actuação da Administração lesiva de um direito do particular que o leva a interpor o recurso” (Cfr. VASCO PEREIRA DA SILVA, Para um Contencioso Administrativo dos Particulares, pág. 144). A doutrina da relação jurídica surge como ponto de partida dogmático capaz de vencer as limitações da doutrina do acto administrativo, pois é um instituto mais amplo, é um conceito-quadro que permite explicar os vínculos jurídicos existentes entre a Administração e os particulares, anteriores e posteriores à prática do acto, assim como aqueles que se estabelecem quando a Administração utiliza formas de actuação distintas.
A relação jurídica não faz desaparecer mas integra o acto administrativo, podendo ser considerada como conceito central do Direito Administrativo, desde que se valorize o procedimento como pano de fundo onde se desenvolvem estas relações jurídicas administrativas. Fazendo um balanço das vantagens e inconvenientes da sua utilização como conceito central, deve dizer-se que corresponde ao modo mais correcto de conceber o relacionamento entre a Administração e os particulares, pois o privado encontra-se perante a Administração, não como um objecto do poder administrativo, mas como um autónomo sujeito jurídico que ocupa uma posição igual à da Administração. Assim, o uso desta dogmática permite colocar a tónica nos direitos individuais e não no poder administrativo, tornando mais forte a posição dos cidadãos, o que constitui uma vantagem.

Portugal
Em Portugal, até 1982/1985, regia o “modelo francês”, em que a regra era o recurso de anulação de actos administrativos, de base objectivista e só em matérias limitadas se admitia um contencioso de plena jurisdição. Assim, a jurisdição administrativa é limitada ao nível substancial (restrição dos meios de acesso), processual (tutela débil dos particulares) e funcional (reduzidos poderes de controlo judicial).
Relativamente aos meios de acesso, o particular tinha que esperar, provocar ou ficcionar (em caso de silêncio da Administração) um acto administrativo para poder recorrer aos órgãos de controlo. Estando em causa direitos subjectivos dos cidadãos que não pudessem ser tutelados pelos meios previstos, restava a hipótese de recurso aos tribunais judiciais. Se os particulares não pudessem invocar direitos subjectivos, remanesciam as garantias políticas e administrativas “graciosas”.
Com a revisão constitucional de 1982 e consequente alteração legislativa de 1984/85 (ETAF e LPTA), entramos num outro período em que é alargado o âmbito do contencioso administrativo e intensificada a protecção dos direitos dos cidadãos. Estas modificações encaminhavam-se no sentido da subjectivização do modelo de justiça administrativa, caminho que, curiosamente, já tinha sido proposto em 1971 num Parecer da Câmara Corporativa que defendia a consagração do direito de recurso contencioso “em caso de lesão de direitos e interesses legítimos por acto da administração pública”. A alteração do modelo reflecte-se principalmente no novo meio de acesso à justiça administrativa, a acção de reconhecimento de direitos ou interesses legalmente protegidos, com a qual se consagra uma tutela jurisdicional de posições jurídicas subjectivas dos particulares e não só o recurso contra actos. Apesar destes avanços, reafirma-se ao mesmo tempo o contencioso contra actos como contencioso-regra e aponta-se a acção de reconhecimento como subsidiária.
No plano processual, é óbvia a preocupação com o purgar das limitações mais chocantes à protecção dos cidadãos (relativamente a actos integrados em diplomas normativos ou confirmativos de actos não comunicados, à invocação indevida da delegação e à ordem de conhecimento dos vícios), equilibrando a posição dos particulares perante os órgãos administrativos: o recurso é menos “um processo feito a um acto” e mais “um processo de partes”. Com o mesmo rumo, consagram-se novos meios acessórios como intimações para consulta de documentos e passagem de certidões.
A reforma profunda do modelo de justiça administrativa português só se inicia com a revisão constitucional de 1989 e culmina com a Reforma de 2002. Consagrou-se, de forma algo encoberta, a garantia constitucional de acesso à justiça administrativa como direito fundamental dos administrados a uma protecção jurisdicional efectiva, pois a tutela dos titulares de posições jurídicas subjectivas não se fazia já só através do recurso contra actos mas sempre que a tutela fosse necessária. Na perspectiva processual, ultrapassaram-se os limites que afectassem desproporcionalmente a protecção judicial dos cidadãos e, no plano funcional, os tribunais administrativos passaram a gozar de todos os poderes normais de condenação e injunção. Pela primeira vez, prevê-se lado a lado a acção de reconhecimento de direitos e o recurso contra actos, o que se pode entender como um afastamento das ideias do recurso contra actos como contencioso-regra e do carácter subsidiário da acção.
A reforma consagrou assim um modelo subjectivista, prevendo o processo administrativo como um processo de partes e alargando os poderes de decisão do juiz perante a Administração. Não se abandonaram, porém, alguns elementos objectivistas, ao nível da legitimidade activa, da previsão de litígios inter-administrativos ou nos expressivos poderes do Ministério Público como auxiliar de justiça.
A Constituição Portuguesa, tratando o indivíduo como sujeito de direito nas relações administrativas, implica a sua consideração como parte no contencioso administrativo (20º/1 e 268º/4 e 5). Temos assim que, na ordem jurídica portuguesa, o particular é visto como titular de situações jurídicas substantivas, ocupando uma posição de parte no contencioso administrativo de anulação ao agir para a defesa dos seus direitos lesados. Pode concluir-se que o contencioso administrativo é, de acordo com a Constituição, um processo de partes, tendo por objecto relações jurídicas administrativas (214º/3). A Lei Fundamental consagra assim a concepção da relação jurídica.

Ana Teresa Faria, n.º 16500, Sub-turma 5
(republicação do post feito no dia 31.03.2010 no blog geral do Prof. Vasco Pereira da Silva)

Sem comentários:

Enviar um comentário