domingo, 23 de maio de 2010

O Parente Pobre da Família da Inconstitucionalidade

A Acção Administrativa Especial de Impugnação de Normas e Declaração de Ilegalidade por Omissão, encontra-se prevista nos artigos 72º e ss. do C.P.TA. (Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais), esta é uma norma que foi introduzida entre nós em 2004, e que tem o cunho dos estudos realizados pelo Prof. Rui Chancerelle de Machete.
Neste tipo de Acção Administrativa Especial, compreende-se todo o contencioso relativo às normas regulamentares emanadas pela Administração, recorde-se aqui o conteúdo do artigo 268º nº4 e 5 da C.R.P. (Constituição da República Portuguesa), que garante aos particulares o direito de impugnar normas administrativas com eficácia externa lesivas dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, é com certeza este, o preceito constitucional que a citada Acção Administrativa Especial visa concretizar.
No âmbito deste novo regime de declaração de ilegalidade de normas administrativas, bastante influenciado pelo regime de declaração de inconstitucionalidade previsto na Constituição (artigos 277º e ss. da C.R.P.), podem ser pedidos à Administração dois tipos de declaração de ilegalidade:

1. Declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, prevista no artigo 73º nº1 do C.P.T.A. ;

2. Declaração de ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso concreto (artigo 73º nº2 do C.P.T.A.;

No entanto, ao tentar estabelecer um regime “paralelo”, quer à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, quer à declaração de inconstitucionalidade no caso concreto, reflectindo as orientações dos artigos 280º e 281º da C.R.P., o nosso legislador administrativo não foi muito feliz, pois dificultou o acesso dos particulares à impugnação de normas administrativas, algo que seria bem mais simples se esta impugnação seguisse o processo normal de impugnação de actos administrativos.
Ora vejamos, de acordo com o artigo 73º nº 3 do C.P.T.A., a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, pode ser pedida sem mais fundamentos, pelo Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento das pessoas mencionadas no artigo 9º nº2 do C.P.T.A; o Ministério Público tem mesmo o dever de pedir essa declaração de ilegalidade, quando tenham já acontecido três situações de desaplicação da norma, com fundamento em ilegalidade (artigo 73º nº4 do C.P.T.A.) . Mais difícil é no entanto, o acesso a este meio contencioso por parte dos particulares, que só podem a ele recorrer, pedindo a declaração de ilegalidade da norma com força obrigatória geral, quando a aplicação da norma já tenha sido recusada pelo tribunal, por três vezes., com fundamento na sua ilegalidade. Para restringir ainda mais a margem de manobra do particular nesta situação, temos ainda que contar com o facto de estarem excluídos como sendo fundamento de ilegalidade, qualquer dos fundamentos que poderiam determinar a inconstitucionalidade da norma (artigo 281º nº1 da C.R.P. , para o qual remete o artigo 72º nº2 do C.P.T.A.); limitação essa que já não se aplica à declaração de ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso concreto (repare-se na letra do artigo 73º nº2 “sem prejuízo do disposto no número anterior”).
Acompanhando o pensamento do Prof. Vasco Pereira da Silva, pensamos que não se justifica esta “legitimidade especial” concedida ao Ministério Público nesta Acção Administrativa Especial; bem sabemos que lhe compete defender o respeito pelo Princípio da Legalidade, de acordo com o artigo 219º nº1 da C.R.P., no entanto, pensamos que tal não justifica que esse dever subleve o direito de impugnação directa das normas administrativas concedido pela Administração aos particulares, previsto no artigo 268º nº4 da C.R.P.. Não se compreende também, neste âmbito, a desprotecção do “actor popular”, que pode apenas constituir-se como assistente no processo (artigo 73º nº3 do C.P.TA.), e tem que subordinar a sua actuação à do Ministério Público.
Outro aspecto que nos parece pouco congruente em todo esta temática, prende-se com a possibilidade de, à semelhança do que se dispõe no artigo 282º nº 4 da C.R.P., o juiz poder “mitigar” os efeitos da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral -que em princípio tem efeitos ex tunc (à semelhança da declaração de inconstitucionalidade 281º nº1 C..R.P.)- através do afastamento da retroactividade da declaração de inconstitucionalidade, “quando razões de segurança jurídica, de equidade ou de interesse público de excepcional relevo, devidamente fundamentadas, o justifiquem”. Ou seja, uma vez interposta a acção tendente à declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, o particular pode ainda ver os seus interesses coarctados se se sobrepuserem a estes razões de ordem pública como as que se podem discernir do artigo 76º nº2 do C.P.T.A. Tem sido colocada, nesta sede, pela doutrina, a questão da possibilidade de haver responsabilidade por facto ilícito da Administração, quando o particular tenha sido lesado por norma que lhe é directamente aplicável, mas que já foi julgada ilegal por três vezes pelo tribunal. O Prof. Mário Aroso de Almeida, entende que nestes casos deve haver responsabilidade da Administração, por facto ilícito, se dai resultarem prejuízos para o particular, pois ainda que por razões de segurança jurídica os efeitos da declaração de ilegalidade possam ser limitados no tempo, isso não faz com que a norma não seja ilegal desde o início. A esta posição opõe-se a Prof. Carla Amado Gomes entendendo que a responsabilidade da Administração, seria aqui apenas por facto lícito, uma vez que a Administração teria apenas, “como que ratificado” os efeitos passados, mantendo-os por razões de ordem pública. Não nos parece que deve no entanto proceder a argumentação do Prof. Mário Aroso de Almeida, pois com todo o respeito, não se vê como pode o Tribunal, ao limitar os efeitos da declaração de ilegalidade, por razões que, fundamentadamente o justifiquem, ser condenado por um facto ilícito, ainda que com isso venha a ser prejudicado o particular, parece-nos que, quanto muito, haverá aqui responsabilidade por facto lícito, tal como é defendido pela Prof. Carla Amado Gomes.
Como segunda hipótese permitida pelo artigo 73º nº2 do C.P.T.A., pode o particular, ou as entidades mencionadas no artigo 9º nº2, pedir a declaração de ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso concreto, quando os efeitos da norma se produzam imediatamente, sem dependência de um acto administrativo ou jurisdicional da Administração. Esta disposição tem como ratio evitar que a norma seja aplicada ao interessado, quando a sua aplicação não dependa de qualquer outro acto administrativo, e por isso lese directamente os direitos ou interesses do particular, esta é uma norma que concretiza o artigo 268º nº5 da C.R.P. . É importante ter aqui bem presente que nada obriga o particular a recorrer à declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, quando a norma em causa já tinha sido identificada como ilegal por três vezes, o particular é aqui livre de, se quiser e se for mais vantajoso, recorrer à declaração de ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso concreto. Tal escolha pode ter vantagens para o particular, na medida em que não fica sujeito aos limites impostos pelo artigo 72º nº2 do C.P.TA., e que como já vimos, não se aplicam à declaração de ilegalidade sem força obrigatória geral; não fica também sujeito a que haja uma limitação dos efeitos dessa declaração de ilegalidade, de acordo com o artigo 76º nº2 do C.P.T.A., que não se aplicam também a este caso.
Por último, cremos ser ainda importante focar a nossa atenção na possibilidade aberta pelo legislador de o Ministério Público ou as entidades referidas no artigo 9º nº 2 do C.P.T.A., poderem pedir a declaração de ilegalidade por omissão de determinada norma, nos termos do artigo 77º do C.P.T.A., que foi decalcado do artigo 283º da C.R.P.
No entanto, o aspecto que nos parece ser mais relevante entre a novidade que representa este artigo 77º do C.P.TA., é o facto de o Tribunal fixar um prazo, não inferior a seis meses, para que a Administração supra a omissão ( artigo 77º nº2 do C.P.T.A.). Tomando a liberdade de usar uma expressão do Prof. Vasco Pereira da Silva, entendemos também que aqui o legislador teve “vergonha de consagrar uma acção de condenação da Administração”, e por isso preferiu mitigá-la através da denominação de “declaração ilegalidade por omissão”, mas que parece de todo inadequada face à letra do artigo, e sobretudo quando comparado com o artigo 283º da C.R.P. que se limita a prever no seu nº 2 que “ Quando o Tribunal Constitucional verificar a existência de uma inconstitucionalidade por omissão, dará disso conhecimento ao órgão legislativo competente.”, não prevendo, em nenhum momento um prazo para o suprimento da omissão, ao passo que na acção de declaração de ilegalidade por omissão, o particular pode mesmo lançar mão de uma sanção pecuniária compulsória e pedir a fixação de um prazo limite para que a Administração actue, nos termos dos artigos 164º nº4 d), 168º e 169º do C.P.T.A, podendo mesmo essa sanção pecuniária compulsória ser fixada logo pelo tribunal, ao abrigo do artigo 3º nº2 e 44º do C.P.T.A., se tal se justificar.
Como apontamento final, em termos de oportunidade de dedução do pedido de declaração de ilegalidade, cabe dizer que este pode ser pedido a todo o tempo de acordo com ao artigo 74º do C.P.T.A.; e quando ao interesse do pedido este pode ser presente ou futuro (desde que previsível ), e pode ser directo ou indirecto, tal com resulta do artigo 73º nº1 do C.P.T.A.

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