segunda-feira, 24 de maio de 2010

A "relação difícil" entre a Administração e a Constituição

  • O Contencioso Administrativo como "Direito Constitucional concretizado"
Citando o Professor Vasco Pereira da Silva (in O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, pág. 169), que parte da "figuração" de Ould Bouboutt, «a "relação difícil" (...) entre Direito Administrativo e Direito Constitucional, (parece-se) com a de "irmãos siameses" que, ao longo da História, estiveram muitas vezes desavindos, mesmo quando "não podiam passar um sem o outro"».

Contrariamente ao ocorrido no passado, hoje em dia estes dois ramos de Direito estão interligados, numa complexa relação de dependência recíproca.
No passado, o Direito Administrativo era visto como um ramo de Direito "parado no tempo", lento, ao passo que o Direito Constitucional se encontrava em constante evolução. A partir do séc. XIX/XX esta prespectiva encontra-se superada, e o Direito Administrativo é visto como "Direito Constitucional concretizado", conforme entendeu já Fritz Werner, nos anos 70.

Importa referir apenas que na França foi muito questionada a questão das «"bases constitucionais" do Direito Administrativo», relevando as opiniões discordantes de Georges Vedel (que entendia que os dois ramos de Direito não podiam definir-se de forma autónoma, pois a definição da Administração partia da Constituição) e de Charles Eisenman (que entendia a questão apenas de um ponto de vista da hierarquia das fontes e realçava a autonomia do Direito Administrativo), que se vieram revelar como importantes concepções antagónicas. Não obstante, G. Vedel veio, mais recentemente, reconhecer a hierarquia entre as duas fontes, reforçando a posição superior das normas constitucionais.

Voltando ao actual estado da "relação" entre ambos os ramos de Direito, verifica-se a existência de diferentes prespectivas quanto ao modo, amplitude e reciprocidade da mesma.

- Modo: Apesar de sempre ter sido reconhecida a relevância da Constituição para a Administração, só mais tarde aquela serviu de "padrão" e fundamento de validade do controlo da actuação desta. Entramos assim no problema da subordinação material da Administração, da conjugação e cooperação dos dois ramos. Peter Häberle refere, a este respeito, de uma ligação por um "cordão umbilical", e é mesmo disso que se trata.

- Amplitude: Nos nossos dias e no actual Estado de Direito, importa considerar, nas palavras do regente da cadeira, a "dependência recíproca" entre os dois ramos de Direito, quer de um ponto de vista substantivo, quer de um ponto de vista processual (isto porque se considera haver hoje quer uma dependência constitucional do Direito Administrativo quer uma dependência administrativa do Direito Constitucional).
Ganha assim uma importante relevância a dimensão processual, pelo que P. Häberle propõem a criação de um status activus processualis, integrado no até então exclusivo status activus, que possibilitaria a contretização processual dos direitos fundamentais.

  • A Constituição Portuguesa do Processo Administrativo

Conforme o art. 202º e ss e o art. 268º/4 e 5 da CRP, o Contencioso Administrativo encontra-se integralmente jurisdicionalizado e tem em vista a tutela dos direitos dos particulares face à Administração.

A CRP de 1976 insere-se no denominado, pelo Professor, "movimento de constitucionalização" do Contencioso Administrativo, movimento este marcado pela consagração constitucional da garantia de controlo jurisdicional da Administração e de direitos fundamentais no âmbito do Processo Administrativo. O Professor dá especial relevância à consagração do direito de acesso à Justiça Administrativa como direito fundamental, superando-se assim um dos "velhos traumas"do Contencioso Administrativo.

  • A lógica "compromissória" da CRP de 1976

A Lei Fundamental veio consagrar também um "compromisso" para a Constituição do Processo Administrativo.

De maior importância podemos referir a, finalmente, plena jurisdicionalização dos tribunais administrativos, nos termos atrás referidos da consagração do direito de acesso. Trata-se de um duplo compromisso: ao nível do modelo de Justiça Administrativa, encontramos consagrado o novo modelo (jurisdicionalizado e subjectivo) e o "herdado" da ordem constitucional anterior (auto-controlo limitado e objectivo da Administração) e, ao nível da noção de acto administrativo, mantém-se a ideia autoritária do mesmo (construção típica de um modelo de Administração Agressiva, segundo Freitas do Amaral) e é, ao mesmo tempo, apontada a nova noção de acto administrativo, emitido no decurso de um procedimento e com participação dos particulares.

Trata-se, assim, de uma CRP compromissória, ao consagrar o "novo" e o "velho" Contencioso Administrativo.

Outros aspectos foram, posteriormente, regulados, entre os quais: a consagração de um dever de fundamentação dos actos administrativos, a possibilidade de reacção contra omissões administrativas (alteração do estatuto do acto de indeferimento tácito) e a execução das sentenças dos tribunais administrativos.

  • Evolução do modelo constitucional de Contencioso Administrativo ao longo das sucessivas revisões e reformas

- Revisão 1982: alteração do compromisso originário, acentuando a sua vertente de protecção jurídica individual, art. 268º/3 CRP

- Reforma 1984/85: concretização do reconhecimento de um "direito ou interesse legalmente protegido", segundo um sentido da necessidade de criação de novos meios processuais para permitir uma mais alargada protecção desses direitos; possibilidade de recurso contencioso contra actos administrativos independentemente da forma; organização do recurso de impugnação como um verdadeiro processo de partes; possibilidade de impugnação contenciosa dos regulamentos administrativos; etc... O Professor Vasco Pereira da Silva vem criticar a técnica legislativa adoptada, entendendo que houve um "juntar de retalhos" que deixou incompleta a revisão.

- Revisão 1989: veio transformar radicalmente o compromisso constitucional acerca do Contencioso Administrativo, acentuando a sua jurisdicionalização e subjectivação. Entre outras, estabeleceu-se que os tribunais administrativos e fiscais têm jurisdição própria (acentuação da dimensão subjectiva) e o objecto do processo foi alargado (desdobramento da garantia constitucional de acesso em dois direitos fundamentais: o recurso de anulação e outro referente aos demais meios processuais). No entanto, tais transformações não encontraram realização na prática constitucional...

- 1995, Lei de Acção Popular: desenvolvimento de uma vertente objectiva do acesso à justiça, concretizando assim as opções constitucionais. Esta lei, no entendimento do Professor, vem regular a defesa da legalidade e do interesse público ou de interesses indissociáveis de um grupo de pessoas: consagra apenas um alargamento da legitimidade, destinada em primeira linha à tutela jurídica objectiva.

- Revisão 1997 - a "revolução coperniciana": trata-se, mais uma vez, de uma alteração ao compromisso no sentido da integral jurisdicialização e subjectivação do Contencioso Administrativo, regulando de um modo novo a garantia constitucional de acesso à Justiça Administrativa, nos termos no nº4 do art. 268º CRP (relevância à protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares, consagração de um sistema de plena jurisdição com o juiz a gozar de todos os poderes necessários e adequados e a inclusão expressa do direito de impugnação de normas).

  • Finalmente, a Reforma do Processo Administrativo

No final do Séc. XX encontravamos uma total discrepância entre o texto e a prática constitucional no que respeitava ao Contencioso Administrativo, o que o Professor define como «"esquizofrenia" jurídica». O procedimento legislativo que levaria à reforma iniciou-se em 2000 (depois de várias tentativas falhadas desde os anos 90) e veio a revelar-se longo e atribulado: elaboração de diversos anteprojectos que se vieram a revelar apenas como "um (mau) pretexto para o início do procedimento"; período de discussão pública nas Universidade de Direito que consubstanciou uma "fase instrutória"; elaboração de estudos com o auxílio de ciências não jurídicas; realização de novos anteprojectos; aprovação pela AR das Propostas de Lei apresentadas; posterior alteração dos mesmos; etc... O que levou a que a Reforma apenas entrasse em vigor em Janeiro de 2004. Regularam-se aspectos infra-estruturais (como a organização dos tribunais administrativos e fiscais) e questões acerca do regime juridico dos meios processuais (em matéria principal, cautelar e executiva).

O Professor vem referir que a Reforma apresenta um balanço positivo, mas que agora tudo depende da aplicação que lhe for feita.

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