sexta-feira, 21 de maio de 2010

Comentário ao Acórdão STA 11-III-2010, proc.0701/09

Decidiu-se, no Ac.STA 11-III-2010, que o art.51.º, n.º1, CPTA, introduzindo um novo paradigma de impugnação contenciosa de actos administrativos lesivos, convive com a existência de impugnações administrativas necessárias não só quando a lei o previr expressamente, como também em todos aqueles casos anteriores à vigência do CPTA que contemplavam impugnações administrativas previstas na lei e tidas comummente como necessárias. O art.51.º, n.º1, é passível de ser afastado sempre que houver determinação legal expressa, anterior ou posterior à vigência do CPTA, que preveja a necessidade de impugnação administrativa como pressuposto da impugnação contenciosa.
Com efeito, a interpelação administrativa prévia tem sido vista como um pressuposto processual no recurso ao contencioso administrativo, sendo que o art.51.º, n.º1, acabou com o princípio de que o acto deveria ser verticalmente definitivo, ou seja, de que para recorrer ao contencioso administrativo não era preciso esgotar os meios graciosos (art.59.º, n.º4). O art.59.º, n.º4, tirou toda a utilidade ao preceito do art.167.º que divide os recursos hierárquicos em necessários e em facultativos, consoante sejam ou não susceptíveis de recurso hierárquico os actos a impugnar. Os recursos passaram todos a ser facultativos. O problema coloca-se, contudo, quanto aos casos em que uma lei especial preveja um recurso hierárquico necessário em derrogação ao regime geral: será inconstitucional por restrição ilegítima a um direito fundamental (art.18.º CRP)? A doutrina tem-se dividido, mas julgamos de subscrever a opinião segundo a qual esta restrição à impugnação contenciosa, com obrigatoriedade de esgotamento de meios graciosos, não contraria o art.268.º, n.º4, CRP, salvo nos casos em que o percurso legal imposto para alcançar a via contenciosa suprima ou restrinja intoleravelmente o direito de acesso ao tribunal ou prejudique desproporcionada ou arbitrariamente a protecção judicial efectiva dos cidadãos. Esta restrição intolerável do direito fundamental não acontece, porque o recurso hierárquico necessário tem sempre o efeito suspensivo dos actos lesivos praticados. Para além disso há quem ponha relevo na “utilidade” da impugnação administrativa ante a graciosa, nomeadamente porque é mais informal e com menos custos e proporcionam várias utilidades práticas, incluindo a de obrigar uma autoridade administrativa mais qualificada a pronunciar-se sobre o caso, para além de até facilitarem a preparação da petição da acção e do pedido judicial de suspensão de eficácia, permitindo que sejam apresentadas logo que o acto se torne eficaz, se a impugnação não tiver êxito.
No caso concreto, parece-nos que haveria, contudo, uma restrição inconstitucional ao direito de impugnar judicialmente o acto, se da interpretação dada aos arts.28.º e 29.º da Lei n.º10/94 (SIADAP) tivesse o tribunal concluído que, para além da reclamação necessária, estaríamos ainda perante um recurso hierárquico necessário. O caso, todavia, era o de apurar se estávamos perante uma reclamação facultativa ou necessária. O douto Ac.STA 11-III-2010 considerou que estaríamos perante uma reclamação necessária compatível com o art.51.º, n.º1, com dois argumentos centrais: dizendo que a Lei n.º10/2004, que o SIADAP regulamenta, dispõe no sentido inverso embora não se pronunciando directamente sobre a natureza desta reclamação, bem como o facto de o art.51.º, n.º1, CPTA, não ter revogado as normas existentes em diplomas avulsos que previssem, em termos expressos, a existência de reclamações graciosas em determinados procedimentos.
Em primeiro lugar, não nos parece de todo conclusivo que o facto de a Lei n.º10/2004 dizer que à fase da homologação se segue a fase da reclamação, pois, com efeito, não é duma classificação ou enumeração das fases que retiramos consequências acerca da natureza jurídica duma figura, mas do seu regime. É marcadamente reconhecido que há fases eventuais e fases obrigatórias em todos os procedimentos, e o facto de todas elas estarem classificadas ou enumeradas num preceito não nos induz à sua natureza por si só. Em segundo lugar, é verdade que o CPTA, e bem assim o seu art.51.º, n.º1, não revogou as impugnações administrativas necessárias constantes de leis avulsas. Mas isso não significa que não tenha havido uma alteração relevante na ordem jurídica com a introdução deste novo paradigma, e com a alteração constitucional em 1989 do art.284.º, n.º4, CRP. Ademais, consistindo a reclamação necessária uma restrição a um direito fundamental, ela deve ser interpretada no sentido menos restritivo possível para os particulares lesados (princípio odiosa sunt restringenda), o que não nos parece ter sido feito: na dúvida, parece-nos que se optou pela interpretação mais gravosa dos direitos dos particulares (excepto para os que acentuam as muitas potencialidades e “utilidades” do recurso hierárquico: mas, mesmo a assim ser, ele deverá ser deixado na livre disponibilidade dos particulares, e não tornado obrigatório). Frise-se ainda que desde 1985 que acabaram as reclamações necessárias como princípio, donde o maior cuidado ainda na interpretação que qualifique uma reclamação como necessária. Por último, o STA, com o devido respeito, esteve mal ao não analisar com a devida atenção a conformidade constitucional e a conformidade da reclamação necessária (que não nos parece expressa) com os princípios conformadores do sistema jurídico, sobretudo após a Reforma do Contencioso Administrativo com o CPTA.

Cátia Freire
nº 16559
subturma 9

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