sexta-feira, 21 de maio de 2010

COMENTÁRIO AO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DOS CONFLITOS DE 26/09/07

(sobre a responsabilidade extracontratual do Estado e demais entidades públicas)
(gestão pública/gestão privada)

Nos termos do anterior ETAF, a atribuição à jurisdição administrativa de questões sobre a responsabilidade extracontratual do Estado dependia de a mesma ser oriunda de um acto de gestão pública (anterior art.51/1-h). Assim, perante um caso de responsabilidade extracontratual do Estado a atribuição de jurisdição aos tribunais comuns (onde vigora o princípio da competência residual) ou aos tribunais administrativos (onde vigora o princípio da atribuição positiva de jurisdição) dependia da prévia discussão sobre a dicotomia actos de gestão pública/actos de gestão privada, de modo a que se concluissemos que a responsabilidade civil fosse decorrente de um acto de gestão privada seriam competentes os tribunais comuns (e, dentro destas, os tribunais civis), mas se pelo contrário a mesma responsabilidade fosse decorrente de um acto de gestão pública então já seriam competentes os tribunais administrativos (art.51/1-h) ETAF anterior). Deste modo era necessária a sua distinção: actos de gestão pública serão os praticados pelos órgãos ou agentes da administração no exercício de um poder público, isto é, no exercício de uma função pública, sob o domínio das normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios de coacção; actos de gestão privada os praticados pelos órgãos ou agentes da administração em que esta aparece “despida” de poder, e, portanto, numa posição de paridade com o particular a que o acto respeita, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular com inteira submissão às normas de direito privado.

Note-se que a responsabilização do Estado por actos de gestão pública emerge do Lei 67/07, tendo ainda em atenção os arts. 22 e 271 CRP, enquanto que a sua responsabilidade por actos de gestão privada é regulada pelo art.501 CC (esta questão será tratada com mais pormenor mais à frente no comentário).

Conclui-se então que no anterior regime a jurisdição administrativa aplicava sempre direito público enquanto que a jurisdição comum aplicava direito privado.

Pois bem, actualmente, o novo art.4/1-g) e h) ETAF revogou o anterior art.51/1-h), dispondo que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto: al.g) questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa; al.h) a responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos; ainda a al.i) responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público. Portanto, ao contrário do que sucedia anteriormente, no actual regime não existe repartição de jurisdição em função do direito a aplicar, posto que agora os tribunais administrativos passam a decidir casos regidos quer pelo direito público (pela Lei 67/07 em conjugação com os arts. 22 e 271 CRP) quer pelo direito privado (art. 501 CC) pois apreciam tanto responsabilidade derivada de actos de gestão pública como de responsabilidade decorrente de actos de gestão privada. Ou seja, o critério de atribuição de jurisdição passou de um carácter objectivo (situação fáctica de gestão pública ou privada) para assumir um carácter subjectivo: apenas interessa indagar sobre a natureza da pessoa responsável, se for uma pessoa colectiva de direito público (Estado, institutos públicos, etc) ou um titular de órgão, funcionário, agente ou demais servidores públicos, então serão competentes os tribunais administrativos, nos termos do art.4/1-g) e h) ETAF. No entanto, é necessário acrescentar dois pontos: no primeiro, a única interpretação teleológica possível do art.4/1-h) leva-nos a concluir que apenas será competente o tribunal administrativo para conhecer da responsabilidade extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos quando a jurisdição administrativa o for nos termos da al.g), nunca podendo haver aplicação isolada da al.h), ou seja, não é possível uma interpretação literal da mesma, sob pena de ser a jurisdição administrativa sempre competente para a a responsabilidade extracontratual de, por ex, um titular de um órgão de uma pessoa colectiva pública mesmo quando a situação não possuisse nenhuma relação com tal titularidade do órgão, casos em que tal jurisdição deve caber aos tribunais comuns (civis), veja- se a hipótese de um Presidente de um instituto público, durante o período de férias quando se dirigia de carro a uma instância balnear, ter um acidente de viacção; no segundo ponto a acrescentar, temos dizer que o critério subjectivo de atribuição de competência, constituído pelas als. g) e h), não encontra equivelente na al.i) posto que esta constitui um critério material pois o regime da responsabilidade do Estado e demais entidades públicas, previsto na Lei 67/07 e pressuposto de aplicação da norma da al.i), distingue entre actividade administrativa e outras e só se aplica às primeiras, sendo portanto competente a jurisdição administrativa mesmo em relação a entidades privadas quando for de aplicar ao caso o regime de direito público de responsabilidade civil.

Quanto à situação discutida no Acórdão 26/09/07 do Tribunal dos Conflitos, dizia esta respeito a um pedido de indemnização a título de danos patrimoniais e não patrimoniais no valor de 14.999.60 euros contra o Estado, sofridos em consequência de um acidente de viação imputável ao segundo réu, militar do Estado Português, quando conduzia um veículo pertencente ao primeiro numa viagem de serviço. A acção foi intentada num tribunal comum, sendo que este considerou- se competente para a causa (portanto, os tribunais da ordem judicial). O MP recorreu da decisão e o tribunal da Relação, por sua vez, considerou que a competência cabia nos tribunais administrativos. O autor recorreu desta última decisão para o Tribunal dos Conflitos que toma a decisão final, com a qual concordo a nível legal mas já não a nível constitucional, de atribuição de competência à ordem dos tribunais administrativos.

A decisão do tribunal de 1 instância apoiou-se na seguinte fundamentação: De harmonia com o disposto no art.501 CC, o Estado e demais pessoas colectivas públicas, quando haja danos causados a terceiros pelos seus órgãos, agentes ou representantes, no exercício de actividades de gestão privada, respondem civilmente por esses danos causados pelos comissários; no caso em apreço o Estado Português em lugar algum da sua contestação alegou a realização de qualquer função soberana quando da ocorrência do acidente, razão pela qual é de inferir que a viagem do militar em causa, também réu na acção foi uma viagem de serviço para a realização de interesses de direito privado do Estado e, neste sentido, tem plena aplicação o disposto no art.501 CC, sendo competente este tribunal. Nota- se portanto que este tribunal judicial de 1 instância continua a atribuir jurisdição aos tribunais comuns ou aos tribunais administrativos consoante a lei que rege a questão de direito: se for a lei privada então a competência nunca poderá ser da ordem adminitrativa, no pressuposto de que tribunais administrativos aplicam direito público e tribunais civis direito privado.

Veja-se que este entendimento pode ser, porventura, a única interpretação constitucional possível do art.4/1-g) ETAF, pois que a CRP no seu art. 212/3 nos diz: Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. Ora não vejo, por ex, como é que uma indemnização baseada numa hipótese como a nossa possa ser considerada um litígio emergente de uma relação jurídica administrativa. Deste modo me parece que uma interpretação literal do art.4/1-g) que confira jurisdição aos tribunais administrativos sempre que a responsabilidade recaia sobre entidades públicas, independentemente de estarmos perante uma relação jurídica administrativa ou civil, é constitucional. Não creio, porém, que o que acabo de dizer nos obrigue a afirmar que tribunais civis apenas aplicam direito privado (art 501 CC) e tribunais administrativos direito público (Lei 67/07). Isto porque deveremos separar as duas questões: uma a da lei (pública ou privada) que regula uma hipótese de gestão privada, outra a da atribuição de jurisdição à ordem administrativa para resolução de casos de gestão privada (tal será discutido no final do comentário).

O MP recorreu com os seguintes fundamentos: Pela CRP compete aos tribunais administrativos dirimir litígios emergentes das relações jurídicas administrativas; pelo art.66 CPC os tribunais judiciais têm competência residual; pelo art.4/1-g) ETAF atribui-se positivamente a competência para o caso em apreço oas tribunais administrativos, tendo desaparecido a exigência anteriormente contida no art.51/1-h) de a responsabilidade civil ser decorrente de actos de gestão pública; os tribunais administrativos passam assim a ser competentes para apreciação das questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público e seus agentes, representantes, etc. independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou de direito privado; o critério diferenciador da competência entre a jurisdição administrativa e a jurisdição cível arrancava, na vigência do ETAF 84, da existência, respectivamente, dos actos de gestão pública e de gestão privada, até à data em que entrou em vigor o actual ETAF; outro porém é o critério legal consagrado na al.g) do n1 do art.4 do ETAF quanto à competência dos tribunais administrativos no âmbito da responsabilidade civil extracontratual que passa a abranger não só os actos de gestão pública como os actos de gestão privada das pessoas colectivas de direito público.

Embora seja muito discutivel, não posso concordar totalmente com tal entendimento pelas mesmas razões que me levam a concordar tendencialmente com a decisão do tribunal de 1 instância.
Devo ainda notar que o MP embora faça referência ao art.212/3 CRP, não retira deste nenhuma conclusão concreta, porventura para não quebrar a coerência à sua fundamentação e, por outro lado, também não analisa nem refere o art.1/1 ETAF que reproduz legalmente o texto constitucional do art.212/3, nem o número 2 do mesmo art.1 que, em bom rigor e tal como o número 1 não necessitava de existir, dispõe que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal não podem aplicar normas que infrijam o disposto na CRP ou os princípios nela consagrados.

Faça- se um pequeno parêntesis para se dizer que a problemática da distinção entre a jurisdição dos tribunais comuns e a jurisdição administrativa sob o acervo constitucional do art.212/3 não é exclusiva da questão da responsabilidade extracontratual aqui analisada, senão vejamos: as decisões dos notários e conservadores são actos administrativos mas são tratadas nos tribunais civis; a indemnização por expropriação é decidida também nos tribunais civis embora seja derivada de um acto administrativo; os processos de contra-ordenação são da competência dos tribunais criminais (embora as contra-ordenações sejam matéria administrativa), etc. Assim constactamos que a norma do art.212/3 CRP que atribui competência para os litígios de relações jurídicas administrativas à ordem dos tribunais administrativos tem muitas excepções legais, algumas ou todas, porventura, inconstitucionais. Para uma análise mais profunda da questão dever-se-ia indagar sobre a natureza da norma contida no art.212/3 CRP a fim de se saber se constitui uma regra jurídica (com carácter de “tudo ou nada” na formulação de Alexy) ou antes um princípio jurídico (com carácter de “peso e importância”). A conclusão pela natureza de regra ou de princípio teria grande importância para a indagação da constitucionalidade das várias excepções, pois a se concluir que estamos perante uma regra então a resposta terá de ser claramente a da inconstitucionalidade, enquanto que se considerarmos que a norma tem natureza de princípio então já se torna mais difícil a averiguação da constitucionalidade, embora a minha resposta também seja tendencialmente pela inconstitucionalidade pois também não vejo que outro princípio poderia justificar a excepção.

Quanto às decisões do Tribunal da Relação e do Tribunal dos Conflitos, as mesmas acompanham os argumentos referidos do MP, pelo que não vale a pena repeti-los. Porém, deve-se referir a declaração de voto do Juiz Santos Botelho, do Tribunal dos Conflitos, que nos diz: Apesar de concordar com a decisão, teria optado por fazer radicar a argumentação no sentido da atribuição da competência à jurisdição administrativa, que é, de resto, a que vem fixada no texto constitucional para definir o âmbito da jurisdição administrativa, o n3 do art.212 CRP, e que corresponde , de resto digo, também ao do texto acolhido no n1 do art.1 ETAF; é que, tenho algumas dúvidas, em sede de constitucionalidade, da interpretação acolhida no Acórdão, quanto ao sentido e alcance das als.g) e h) da n1 do art.4 do ETAF ao se defender que ela comportaria a atribuição da competência aos tribunais administrativos para dirimir litígios não emergentes de relação jurídicas administrativas.

Parece- me que esta declaração de voto não é coerente pois se por um lado diz que não se pode interpretar o art.4/1-g) ETAF como atribuindo competência aos tribunais administrativos para dirimir litígios não emergentes de relações jurídicas administrativas, sob pena de inconstitucionalidade por violação do art.212/3 CRP, por outro considera que na hipótese concreta são competentes os tribunais administrativos pelo litígio se referir a uma relação administrativa. Não vejo como uma situação de responsabilidade civil como a analisada aqui possa ser considerada uma questão de direito baseada numa relação jurídica administrativa, sob pena de toda a actuação de entidades públicas ser considerada de natureza administrativa (por ex, um instituto público compra canetas e lápis a um empresa). Uma última consequência do sentido da declaração de voto é a de que a nossa situação concreta iria ser regida, não pelo art.501 CC, mas sim pela Lei 67/07, por conseguinte, tribunais administrativos aplicam sempre direito público.

Cabe agora e por último referir a posição do Prof.Vasco Pereira da Silva que apoia o sentido da referida declaração de voto, fazendo-o com base nos arts. 2/5 CPA e 1 /2 da Lei 67/07. Defende que nunca existe gestão privada da administração, que qualquer relação com a administração nunca será privada, apoiando- se no art.2/5 CPA (os princípios gerais da actividade administrativa constantes do presente Código e as normas que concretizam preceitos constitucionais são aplicáveis a toda e qualquer actuação da administração pública, ainda que meramente técnica ou de gestão privada) para suportar legalmente a sua doutrina. Quanto à responsabilidade extracontratual do Estado será sempre regida pela Lei 67/07 visto que o seu art. 1 /2 manda aplicá- la às acções e omissões (…) reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo, o que em conjugação com o já referido art.2/5 CPA resulta na aplicação da aplicação da Lei 67/07 para todos os casos de responsabilidade extracontratual de entidades públicas. Em bom rigor, se bem percebi esta doutrina, mesmo que não existisse o art. 1 /2 da Lei 67/07 a construção do Professor permanecia a mesma. Ou seja, abolindo- se a dicotomia gestão pública / gestão privada para determinação da competência dos tribunais, não se pode voltar a introduzir tal dicotomia por via do direito aplicável nos tribunais administrativos, o que levaria a que se estivessemos perante um acto de gestão privada – o que o Professor defende nunca existir - não obstante ser o tribunail administrativo competente, aplicaria direito privado. Propõe portanto a unidade/harmonização entre jurisdição e quadro jurídico aplicável. Concluindo: nunca haverá gestão privada por parte da administração e mesmo que se admita tal gestão privada a mesma será regida pela Lei 67/07 em conjugação do seu art.1 /2 mais art.2/5 CPA, por isso também nunca haverá aplicação de direito privado nos tribunais administrativos, além de que, no nosso caso concreto, conduzir um carro nunca é actividade privada nem pública mas sim técnica.

Concordo com a doutrina do Professor Vasco Pereira da Silva no que toca à aplicação da Lei 67/07 a todo o caso de responsabilidade extracontratual de entidades públicas, porém já me parece bastante discutível que tal implique considerar que qualquer hipótese de responsabilidade nunca deriva de gestão privada, que toda a actuação da administração seja de gestão pública. Isto porque o art. 1 /2 da Lei 67/07 diz-nos o que se considera exercício da função administrativa apenas para os efeitos do disposto no número anterior, ou seja, apenas para a aplicação do regime legal constituído pela Lei 67/07 mas já não para a qualificação de tais acções ou omissões como de natureza administrativa. Muito menos se pode considerar que toda e qualquer actuação da administração será de gestão pública e por isso consubstanciada numa relação jurídica administrativa, pelo menos que tal consideração seja retirada do art. 2/5 CPA pois este dispõe que se aplique a toda a actuação da administração os princípios gerais da actividade administrativa e normas que concretizem preceitos constitucionais, ou seja, é novamente uma norma que estende a aplicação de algumas normas administrativas a situações que pela sua natureza não o são. É o próprio artigo no seu número 5 que diz “ainda que meramente técnicas ou de gestão privada”. Acrescente-se que se estas situações já constituíssem por si relações administrativas então não seria necessário tal número 5. Deste modo, quer no art. 1 /2 da Lei 67/07 quer no art. 2 /5 CPA, apenas assistimos a uma extensão do regime legal de direito público a situações que pela sua qualificação jurídica não estariam abrangidas por não constituírem casos de relações jurídicas administrativas.

Assim, se não se questiona que toda a responsabilidade extracontratual do Estado e demais entidades públicas é regida pela Lei 67/07 e, por conseguinte, se deve considerar revogado o art. 501 CC, já se questiona, como o foi feito anteriormente, se será constitucional a atribuição da jurisdição aos tribunais administrativos para litígios emergentes de qualquer responsabilidade extracontratual de entidades públicas mesmo que não emergente de uma relação jurídica administrativa. É minha opinião que tais casos deverão ser, por orientação constitucional, da jurisdição dos tribunais civis e que estes aplicarão a tais situações o regime da Lei 67/07. Como última ponto, não obstante a redacção do art. 2/5 CPA, não creio que existam acções meramente técnicas mas sim que toda e qualquer acção ou é de natureza técnica de gestão privada ou técnica de gestão pública.

Sem comentários:

Enviar um comentário