sexta-feira, 21 de maio de 2010

O milagre da convalidação?!?!

O artigo 38.º CPTA vem permitir a apreciação a título incidental da ilegalidade dos actos administrativos que já não possam ser impugnados. Esses actos já se convalidaram e consolidaram na ordem jurídica, daí que os processos a eles dirigidos não possam dizer respeito à sua respectiva impugnação e eliminação da ordem jurídica. A não coincidência destes efeitos jurídicos é um imperativo para que se possa utilizar esta norma.

Este artigo vem na sequência de um problema suscitado pela redacção do artigo 7.º do DL n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967 que dispunha “o dever de indemnização por parte do Estado e demais pessoas colectivas públicas, dos titulares dos seus órgãos e dos seus agentes, não depende do exercício pelos lesados do seu direito de recorrer dos actos causadores dos danos; mas o direito destes à reparação só subsistirá na medida em que tal dano se não possa imputar à falta de interposição de recurso ou a negligente conduta processual da sua parte no recurso contencioso”. De acordo com a interpretação de Marcello Caetano, Sérvulo Correia e Maria da Glória Garcia, o dever de indemnização dependeria da existência prévia de uma interposição, pelo particular, para recurso de anulação do acto administrativo gerador do dano. Esta autora considera que a acção de indemnização consubstancia um caso em que o legislador privilegia a indemnização por reconstituição natural, como efeito da prática de um acto ilegal da administração, em desfavor da indemnização pecuniária. Também a jurisprudência do STA começou por fazer uma interpretação do segundo segmento deste preceito no sentido deste constituir uma excepção peremptória ao exercício do direito de indemnização, tendo ficado conhecida como caso decidido ou resolvido. Esta interpretação corroborava com a tese que sustentava a dependência e subsidiariedade da acção de indemnização em relação ao recurso contencioso.

Desta forma afastou-se em definitivo de um alegado efeito convalidatório substantivo de actos cuja anulação já não seria possível pelo decurso do prazo e consagrou-se a concepção substancialista (defendida por Rui Medeiros, José Luís Moreira da Silva, Margarida Cortez, Vieira de Andrade). O efeito relevante visado pela disposição normativa diz efectivamente respeito a efeitos meramente adjectivos (processuais) da impugnabilidade, impedindo a consolidação das actuações administravas ilegais. Estes autores defendem a concorrência de culpas (assim, Prof. Vasco Pereira da Silva) ou co-responsabilidade da AP e do lesado, agora concretizado no art.º 6 da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, pelo que, embora a autonomia do pedido de indemnização não seja posta em questão, consideram ser possível que a indemnização possa ser reduzida ou até excluída consoante o resultado do juízo de culpa efectuado. A atitude omissiva ou negligente do lesado importa a produção de um nexo causal em relação aos danos efectivamente produzidos na sua esfera por não ter utilizado, em tempo útil, os meios processuais principais e/ou cautelares, levando ao agravamento da lesão sofrida. O conceito de culpa não se reporta, porém, à prática de qualquer facto ilícito nem à violação de um dever, mas à mera reprovação da atitude pouco ou nada diligente do “(auto)lesado” na defesa dos seus interesses. Pode concluir-se que a natureza e efeitos deste preceito se podem assemelhar a um ónus do “lesado”, de forma a se evitar a procedência pedidos de indemnização avultados com base numa situação, em parte causada pelo autor/lesado, de um “quase” abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.

No que toca a acção administrativa especial, o pedido de indemnização é deduzível quando em cumulação de pedidos com um acto ou regulamento (art.º 47 CPTA), trazendo a possibilidade da utilização simultânea de meios processuais à partida diferentes, e, deste modo, assegurando de forma mais eficaz e célere a justiça material e a globalidade da relação jurídica. O n.º 1 do referido artigo restringe a aplicação, embora de forma exemplificativa, aos casos em que “a lei substantiva o admita”, como é caso dos pedidos fundados em responsabilidade civil extracontratual da Administração por actos administrativos ilegais. A apreciação da existência da ilegalidade do acto já convalidado e inimpugnável é pressuposto necessário e intransponível para que não improceda, ab initio, o pedido indemnizatório autónomo em sede de acção administrativa comum. Outra situação em que parece ser possível a utilização do dispositivo legal do art.º 38 do CPTA é a de “um funcionário que tenha deixado consolidar-se um acto que lhe aplicou uma sanção disciplinar ilegal vir a pedir o reconhecimento incidental da ilegalidade desse acto em eventual processo dirigido a evitar que o facto de a sanção constar no seu curriculum possa vir a afectar as regalias futuras ou a pôr em causa as suas hipóteses de progressão na carreira” (Mário Aroso de Almeida; no mesmo sentido, Vasco Pereira da Silva).

O n.º 2 proíbe a utilização da acção administrativa comum para obter a anulação do acto inimpugnável por não ser este, obviamente, o meio processual indicado, uma vez esse efeito deverá ser obtido através de uma acção administrativa especial. Desta forma é necessário proceder à análise da norma ou princípio substantivo em questão para que não se obtenha um resultado igual ao da anulação do acto. Esta apreciação meramente incidental, não directa como proíbe o n.º 2, da ilegalidade de actos administrativos, não é em nada incompatível com o facto de o acto administrativo já se ter tornado insusceptível de impugnação em virtude do decurso do prazo de interposição da respectiva acção.

A admitir-se tal interpretação, continuaríamos num contencioso administrativo pródigo em milagres (Vasco Pereira da Silva acentua esta ideia), sendo que este seria o do desaparecimento de uma ilegalidade por mero efeito do decurso temporal. Ora, um acto ilegal não deixa de o ser pelo simples avançar das horas, daí que se perceba a proporção existente e subjacente a este regime, que atribui a possibilidade da de dedução de pedido de indemnização, desde que a título incidental e para que não se obtenha o mesmo “efeito que resultaria da anulação do acto inimpugnável”. Repartem-se assim, de forma equitativa, as responsabilidades dos dois lados envolvidos, não precludindo a possibilidade de se verificar a ilegalidade do acto, mas de, em simultâneo, improceder o pedido do “lesado” se comprovada a sua culpa no avolumar de prejuízos na sua esfera jurídica. Pretende-se uma tutela jurídica efectiva dos direitos por actuações contrárias à lei por parte da administração, desde que acompanhada de actuações diligentes e não omissivas dos particulares lesados.

Pedro Menezes Cardoso, n.º 16136, subturma 9

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